Heidegger (GA24) – Sujeito e Objeto

[HEIDEGGER, Martin. Os problemas fundamentais da fenomenologia. Tr. Marco Antônio Casanova. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 183 seg.]

Apesar de, visto em termos principiais, tudo ter permanecido na mesma na filosofia moderna, a distinção e o acento no sujeito precisaram de qualquer modo levar a que se colocasse de alguma maneira a diferença entre sujeito e objeto no centro e a que se tomasse de maneira mais profunda também a própria essência da subjetividade.

O que importa de saída é ver de que maneira a filosofia moderna toma essa diferença entre sujeito e objeto, mais exatamente, como a subjetividade é caracterizada. Essa diferenciação entre sujeito e objeto penetra a problemática de toda a filosofia moderna e alcança até mesmo o cerne do desenvolvimento da fenomenologia atual. Em suas Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica, Husserl diz: “A doutrina das categorias precisa partir efetivamente dessa mais radical de todas as diferenciações ontológicas – ser como consciência (isto é, res cogitans) e ser como ser ‘transcendente’ que ‘se anuncia’ na consciência – (isto é, res extensa)”1. “Entre a consciência (res cogitans) e a realidade (res extensa) se abre um verdadeiro abismo do ser”2. Husserl refere-se constantemente a essa [184] diferença e precisamente da forma como a enunciou Descartes: res cogitans; res extensa.

Como é preciso determinar mais exatamente essa diferença? Como é que, ante a realidade, o que significa aqui, ante a realidade efetiva, a presença à vista, se toma o ser do sujeito, do eu? Com o fato de essa diferença ser afirmada ainda não está dito que os diversos modos de ser desse ente também são expressamente concebidos. Mas se o ser do sujeito deveria se mostrar como algo diverso da presença à vista, então se estabelece com isso um limite fundamental à equiparação feita até aqui entre ser e realidade efetiva ou presença à vista. A questão da unidade do conceito de ser em contraposição a essas duas multiplicidades inicialmente vistas do ser torna-se ainda mais premente.

Com vistas ao que sujeito e objeto são ontologicamente distintos? Para respondermos essa pergunta, poderíamos nos orientar convenientemente pelas determinações cartesianas. Ele colocou pela primeira vez expressamente essa diferença em uma posição central. Ou nós poderíamos buscar informações junto à estação final decisiva do desenvolvimento da filosofia moderna, junto a Hegel, que formulou a diferença como a diferença entre natureza e espírito ou entre substância e sujeito. Não escolhemos nem o início, nem o fim do desenvolvimento desse problema, mas sim a estação intermediária decisiva entre Descartes e Hegel, a concepção kantiana do problema, concepção essa que foi tão determinada por Descartes quanto determinante para Fichte, Schelling e Hegel.


Rickert talvez conceba de maneira mais formal a relação sujeito-objeto. Ele diz: “Os conceitos do sujeito e do objeto se requisitam mutuamente, tal como também o fazem outros conceitos, por exemplo, o conceito de forma e de conteúdo ou o de identidade e de diversidade”3. No entanto, é preciso perguntar aqui: Por que é que esses conceitos, sujeito e objeto, se requisitam mutuamente? Ora, evidentemente apenas porque o que é com isto visado se requisita. Mas um objeto requisita um sujeito? Manifestamente, pois algo que se encontra contraposto é sempre um contraposto para aquele que o apreende. Com certeza. Ora, mas todo ente é [230] necessariamente objeto? Os processos naturais precisam ser objetos para um sujeito, a fim de que eles possam ser o que eles são? Evidentemente não. O ente é considerado desde o princípio como objeto. Assim, pode ser deduzido daí o fato de pertencer a isto um sujeito, pois com a caracterização do ente como objeto já coposicionei tacitamente o sujeito. Com essa caracterização do ente como objeto (Objekt) e do ente como aquilo que se encontra contraposto (Gegenstand)4, contudo, já não tenho mais o ente nele mesmo com vistas ao seu modo de ser próprio e a ele pertinente, mas o ente como algo que se encontra estabelecido em uma posição contraposta, como algo que se encontra contraposto (como objeto). Nesta interpretação puramente kantiana, então, ser significa o mesmo que o caráter daquilo que se encontra contraposto (objetividade).

Assim, fica claro: se ao sujeito se contrapõe um objeto, a questão ainda não se inscreve de maneira alguma na dimensão capaz de perguntar sobre o modo de ser específico do ente que se tornou objeto em sua relação com o modo de ser de um sujeito. Inversamente, a um sujeito, considerado como aquele que apreende, pertence um apreendido. Mas será que o sujeito precisa necessariamente apreender? A possibilidade ontológica de um sujeito é dependente do fato de algo ser dado como objeto para a sua apreensão? De maneira alguma. Em todo caso, contudo, a questão não pode ser simplesmente decidida. Parece à primeira vista que, em meio à relação sujeito-objeto, ter-se-ia conquistado um ponto de partida materialmente consistente para o questionamento e uma concepção isenta de preconceitos do problema com o ponto de partida unilateral pelo sujeito. Considerado mais detidamente, porém, esse ponto de partida de uma relação sujeito-objeto obstrui o acesso à questão ontológica [231] propriamente dita acerca do modo de ser do ente, que possivelmente se torna objeto, mas que não precisa necessariamente se tornar.

No entanto, mesmo que não se admita a correção do ponto de partida junto a um sujeito isolado, mas se procure antes partir da relação sujeito-objeto, é preciso perguntar: Por que um sujeito “exige” um objeto e vice-versa? Pois algo presente à vista não se toma por si um objeto, para em seguida requisitar um sujeito, mas ele só se torna objeto na objetivação por meio de um sujeito. Um ente é sem sujeito, mas só há objetos para um sujeito que o objetifica. Portanto, a existência da relação sujeito-objeto depende do modo de existência do sujeito. Mas por quê? Com a existência do ser-aí já está sempre a cada vez posicionada tal relação? O sujeito poderia de qualquer modo se privar da relação com objetos. Ou será que ele não poderia? Se não, então não é o objeto o responsável pelo fato de haver uma relação subjetiva com ele, mas articular-se pertence à constituição ontológica do próprio sujeito. Reside no conceito do sujeito se relacionar. O sujeito é nele mesmo algo que se relaciona. Nesse sentido, é necessário formular a questão acerca do ser do sujeito de tal modo que essa determinação essencial do relacionar-se-com, isto é, a intencionalidade, seja copensada no conceito do sujeito, ou seja, de tal modo que a relação com o objeto não seja algo que se ache articulado ocasionalmente com o sujeito com base no estar casualmente presente à vista de um objeto. À existência do ser-aí pertence a intencionalidade. Com a existência do ser-aí, já sempre se desvelou a cada vez de algum modo para esse ser-aí um ente e um nexo com o ente, sem que ele tenha sido expressamente objetivado. Existir significa, então, entre outras coisas: ser se comportando junto ao ente. Pertence à essência do ser-aí existir de tal modo que ele já sempre se encontra junto a um outro ente.


  1. HUSSERL. Ideias, vol. 1, p. 174. 

  2. Ibid., p. 117. 

  3. RICKERT, H. Der Gegenstand der Erkenntnis [O objeto do conhecimento]. 3. ed., p. 3. 

  4. Heidegger joga nesta passagem com a diferença entre o vocábulo latino para designar o objeto e o vocábulo germânico para a sua designação. Em alemão, um objeto é um Gegenstand, literalmente algo que se encontra contraposto.