Heidegger (GA41) – Atitude Natural

Excerto de Martin Heidegger, «O QUE É UMA COISA

Chamamos «natural» àquilo que se deixa compreender «por si mesmo», sem mais complicações, no âmbito do modo quotidiano de compreender. Para um engenheiro italiano, por exemplo, a estrutura interna de um grande bombardeiro compreende-se por si mesma. Para um abissínio de uma povoação interior de montanha, uma tal coisa não é, de modo algum, «natural», não se compreende por si mesma, quer dizer, não se esclarece a partir do que parece evidente, sem necessidade de mais explicações, a este homem e à sua tribo, em comparação com aquilo que já é conhecido todos os dias. Para a época das Luzes, era «natural» o que se deixava provar e compreender a partir de determinados princípios da razão fundada em si mesma e que, desta forma, convinham a cada homem e à humanidade em geral. Para a Idade Média, era natural tudo aquilo que recebia a sua essência, a sua natura, de Deus e que, então, em virtude desta proveniência, podia, sem outra intervenção divina, formar-se e, de certo modo, manter-se por si mesmo. O que era natural para o homem do século XVII, o racional de uma razão em si, liberta de qualquer outra ligação, pareceria totalmente anti-natural ao homem da Idade Média. Mas o contrário também aconteceu, como sabemos, a partir da Revolução Francesa. De tudo isto resulta que o que é «natural» não é de forma alguma «natural», quer dizer, evidente, para qualquer homem existente. O «natural» tem sempre um caráter histórico.

Sem darmos conta disso, avoluma-se uma suspeita: e se esta determinação da essência da coisa, que nos dá a impressão de ser natural (embora não seja, de modo algum, evidente), não fosse «natural»? Deveria ter havido, por isso, um tempo em que a essência da coisa ainda não era determinada deste modo. Em consequência, deve ter havido, mais tarde, um tempo em que, pela primeira vez, esta determinação da essência da coisa se formou. A formação desta determinação da essência da coisa não teria, de forma nenhuma, caído um dia do céu, mas fundar-se-ia, ela própria, em pressupostos totalmente determinados.

Assim é, de fato. Podemos seguir ainda a formação desta determinação da essência da coisa, nos seus traços fundamentais, em Platão e Aristóteles. Não apenas isto: ao mesmo tempo e na mesma conexão com o descobrimento da coisa, foi igualmente descoberta a proposição enquanto tal e, do mesmo modo, descobriu-se que a verdade, enquanto conformidade com as coisas, tem o seu lugar na proposição. Esta determinação da essência da verdade, dita «natural», a partir da qual damos uma prova da justeza da determinação da essência da coisa, este conceito natural de verdade, também não é, sem mais, «natural».

Por este motivo, não é evidente a visão natural do mundo, a que firmemente nos agarramos. Ela permanece questionável. Este «natural», resultado de tantos esforços, é, num sentido muito peculiar, qualquer coisa de histórico. Assim, poderia acontecer que, na nossa visão natural do mundo, estivéssemos dominados por uma visão centenária da coisalidade da coisa, enquanto as coisas, entretanto, se apresentam, no fundo, de um modo completamente diferente. A nossa questão prévia acerca do que significa «natural», preservar-nos-á, depois desta resposta, de tomarmos a questão «que é uma coisa?», irrefletidamente, como uma questão já resolvida. A questão parece agora, pela primeira vez, determinar-se de modo mais aproximado. A própria questão tornou-se histórica. Na medida em que segundo parece, com ligeireza e desprevenidamente, nos dirigimos às coisas e dizemos que elas são um suporte de propriedades, não somos nós que vemos ou falamos, mas uma antiga tradição histórica.