Heidegger (GA41:19-20) – que é uma coisa?

Com a nossa questão «que é uma coisa?», ultrapassamos não apenas as pedras isoladas e os [19] tipos de pedra, as plantas isoladas e as espécies de plantas, os animais isolados e as espécies animais, os instrumentos de uso e de trabalho isolados. Ultrapassamos mesmo estes domínios do inanimado, do animado e do utilitário e queremos apenas saber: «que é uma coisa?» Na medida em que questionamos deste modo procuramos aquilo que faz a coisa ser coisa, enquanto tal, não enquanto pedra ou madeira, aquilo que torna-coisa (be-dingt) a coisa. Não questionamos acerca de uma coisa de uma determinada espécie, mas acerca da coisalidade da coisa. Essa coisalidade, que torna-coisa uma coisa já não pode ser coisa, quer dizer, um condicionado (Bedingtes). A coisalidade deve ser qualquer cc ia de incondicionado. Com a questão «que é uma coisa?», perguntamos pelo incondicionado (Unbedingten). Questionamos acerca do palpável que nos rodeia e, com isto, afastamo-nos ainda e cada vez mais das coisas que nos estão próximas, como Tales, que via até às estrelas. Devemos ultrapassar as estrelas, ir além de todas as coisas, em direcção ao que já-não-é-coisa, aí onde já não há mais coisas que deem um fundamento e um solo.

E, no entanto, levantamos esta questão apenas para saber o que é uma pedra, um lagarto que se expôs ao Sol em cima dela, o que é uma vergôntea que cresce aí perto, o que é um canivete que nós, deitados no prado, temos talvez na mão. Devemos saber precisamente o que o mineralogista, o botânico, o zoólogo e o amolador não querem saber, aquilo que eles julgam apenas querer saber quando, no fundo, querem uma coisa completamente diferente: promover o progresso da ciência, ou satisfazer o prazer da descoberta, ou indicar o caracter utilitário da coisa, ou ganhar a vida. Devemos saber aquilo que nenhum deles não só não sabe, como talvez nem sequer possa saber, apesar de toda a ciência e habilidade manual. Isto soa a arrogância. Não se limita a soar, é-ò. Certamente não se exprime aqui a presunção de uma pessoa isolada, tanto quanto a nossa dúvida quanto ao poder-saber, ou querer-saber, das ciências não se dirige contra a atitude e o modo de pensar de pessoas isoladas, nem mesmo contra a utilidade e a necessidade das ciências. [Martin Heidegger. Que é uma coisa? Doutrina de Kant dos princípios transcendentais. Lisboa: Edições 70, 1992, p. 20]