Heidegger (GA80:34-42) – Possibilidade de uma Filosofia da Informática

O texto abaixo é para nós a inspiração para a reflexão sobre uma possível Filosofia da Informática. Encontra-se em um manuscrito de Heidegger de 19621

Ainda que a interpretação de Wilhelm von Humboldt acerca da língua como visão do mundo constitua uma contribuição frutuosa, deixa no entanto indeterminado o que é próprio da língua, o próprio falar. Por razões que renunciamos expor aqui, Wilhelm von Humboldt fica-se pela definição da língua como expressão, a saber, de um interior — a alma — por um exterior — a voz e a escrita.

Mas falar é essencialmente dizer. Quem quer que seja pode falar sem cessar e a sua palavra não dizer nada. Um silêncio, pelo contrário, pode dizer muita coisa. Mas o que significa «dizer»? Sabê-lo-emos se prestarmos atenção ao termo. Sagan2 significa mostrar. E que significa mostrar? Significa fazer ver e entender qualquer coisa, levar uma coisa a aparecer.

O não dito é o ainda não mostrado, o ainda não chegado ao aparecer. Mas graças ao [35] dizer, o ente-presente ascende à aparência (i.e., ao aparecer): está presente e como; e no dizer vem também à aparência o ausente como tal. Todavia, o homem não pode verdadeiramente dizer, isto é, mostrar e fazer aparecer senão aquilo que se mostra a ele de si próprio, que aquilo que de si próprio aparece se manifesta e se dirige a ele.

Mas o dizer como mostrar pode igualmente ser concebido e efectuado de tal maneira que mostrar significa somente: dar sinais. O sinal torna-se então uma mensagem e uma instrução acerca de uma coisa que, em si mesma, não se mostra. Um som que retine, uma luz que brilha, não são, tomados em si próprios, sinais. Não são produzidos e impostos como sinais senão para que aquilo que devem significar à vez sej a antecipadamente admitido, seja dito. Pensemos nos sinais em morse, que são limitados ao ponto e ao traço e nos quais o número e a ordem são associados às sonoridades da língua falada. O sinal particular, de cada vez, não pode ter senão uma de duas formas, ponto ou traço. A série dos sinais é neste caso reconduzida a uma série de decisões sim-não. As máquinas são coagidas à produção de tais séries: estas, graças aos fluxos de corrente e aos impulsos [36] eléctricos, seguem este modelo abstracto de produção de sinais e fornecem as mensagens correspondentes. Para que uma tal espécie de informação se torne possível cada sinal deve ser definido de maneira unívoca; da mesma maneira cada conjunto de sinais deve significar de maneira unívoca um enunciado determinado. O único carácter da língua que permanece na informação é a forma abstracta da escrita, que é transcrita nas fórmulas de uma álgebra lógica. A univocidade dos sinais e das fórmulas,’que é necessariamente exigida por isto, assegura a possibilidade de uma comunicação certa e rápida.

É sobre os princípios tecno-calculadores desta transformação da língua — como dizer em língua como mensagem e como simples produção de sinais — que repousam a construção e a eficácia dos computadores gigantes. O ponto decisivo para a nossa reflexão atém-se a isto: são as possibilidades técnicas da máquina que prescrevem como é que a língua pode e deve ainda ser língua. O gênero (Art) e o estilo da língua determinam-se a partir das possibilidades técnicas de produção formal de sinais, produção que consiste em executar uma série contínua de decisões sim-não com a maior rapidez possível. A [37] natureza dos programas que podem servir de entradas para o computador, entradas com as quais podemos, como se diz, alimentá-lo, regula-se sobre o tipo de funcionamento da máquina. O modo da língua é determinado pela técnica. Mas o contrário não é verdadeiro? O modelo da máquina não se regula sobre os objectivos linguageiros, como, por exemplo, os da tradução? Mas mesmo neste caso os objectivos da linguagem são, antecipadamente e por princípio, ligados à máquina, que exige sempre a univocidade dos sinais e da sua sucessão. É por isso que um poema, por princípio, não pode ser programado.

Com a dominação absoluta da técnica moderna cresce o poder — tanto a exigência como a eficácia — da língua técnica adaptada para cobrir a latitude de informações mais vasta possível. É porque se desenvolve em sistemas de mensagens e de sinalizações formais que a língua técnica é a agressão mais violenta e mais perigosa contra o carácter próprio da língua, o dizer como mostrar e fazer aparecer o presente e o ausente, a realidade no sentido mais lato.

Mas porquanto a relação do homem, tanto quanto ao ente que o rodeia e o sustenta como ao ente que é ele próprio, repousa sobre o [38] fazer aparecer, sobre o dizer falado e não falado, a agressão da língua técnica sobre o carácter próprio da língua é ao mesmo tempo uma ameaça contra a essência mais própria do homem.

Se, avançando no sentido da dominação da técnica que determina tudo, temos a informação pela forma mais alta da língua por causa da sua univocidade, da sua segurança e da sua rapidez na comunicação de informação e de directivas, então o resultado é a concepção correspondente do ser-homem e de vida humana. Assim lemos em Norbert Wiener, um dos fundadores da cibernética, disciplina avançada da técnica moderna: «Ver o mundo inteiro e dar ordens ao mundo inteiro é quase a mesma coisa que estar em todo o lado» (Homem e máquina humana [[Norbert Wiener, Sprache und Dichtung, Francfort: Kösel-Verlag 1952.]], 95). E noutro lugar: «Viver activamente significa viver com a informação apropriada» (op. cit., p. 114).

No horizonte de representação da língua, seguindo a teoria da informação, interpreta-se igualmente de maneira técnica uma actividade como a de aprender. Assim escreve Norbert Wiener: «Aprender é fundamentalmente uma forma de retroacção pela qual o modelo de comportamento é modificado pela experiência que precede» (op. cit., p. 63). «A retroacção… é um carácter absolutamente universal das formas de comportamento» (ibid.). «A retroacção é a condução de um sistema pela reintrodução no próprio sistema dos resultados do trabalho cumprido» (op. cit., p. 65).

Uma máquina executa o processo técnico de retroacção, definido como circuito de regulação, assim como — senão de maneira tecnicamente mais reflectida — o sistema de mensagens da língua humana. É por isso que a última etapa, se não for a primeira, de todas as teorias técnicas, é explicar «que a língua não é uma capacidade reservada ao homem, mas uma capacidade que partilha até um certo grau com as máquinas que desenvolveu» (Wiener, op. cit., p. 78). Uma tal proposição é possível se se admite que o próprio da língua está reduzido, isto é, limitado à produção de sinais, ao envio de mensagens.

No entanto, também a teoria da informação vai, necessariamente, de encontro a um limite. Porque «cada tentativa de tomar unívoca uma parte da língua (pela sua formalização num sistema de sinais) pressupõe o uso da língua natural, mesmo não sendo ela unívoca» (C. Fr. von Weizsäcker, A língua como informação3). A língua «natural», quer dizer, a língua que não foi por princípio inventada e imposta pela técnica, é sempre conservada e permanece, por assim dizer, como pano-de-fundo de toda a transformação técnica.

Aquilo que é aqui nomeado por língua «natural» — a língua corrente não tecnicizada —, nós denominámo-la no título da conferência por língua da tradição (überlieferte Sprache). Tradição não é uma pura e simples outorga, mas a preservação do inicial, a salvaguarda de novas possibilidades da língua já falada. É esta que encerra o informulado e o transforma em dádiva. A tradição da língua é transmitida pela própria língua, e de tal maneira que exige do homem que, a partir da língua conservada, diga de novo o mundo e por aí chegue ao aparecer do ainda-não–apercebido. Ora eis aqui a missão dos poetas.

O título desta conferência, «Língua da tradição e língua técnica», não designa, pois, apenas oposição. Atrás do título da conferência esconde-se a alusão a um perigo a crescer constantemente e que ameaça o homem no mais íntimo da sua essência — a saber, na sua relação com a totalidade daquilo que foi, do que vai vir e que presentemente é. O que num primeiro momento se apresenta somente como uma diferença de dois gêneros de língua, afirma-se como um acontecimento que domina o homem e que não toca e não abala mais nada do que a relação do homem com o mundo. E um desmoronamento do mundo do qual o homem nota, contristado, os sobressaltos, porque é continuamente coberto pelas últimas informações.

Também imporia examinar se face às forças da época industrial o ensinamento da língua materna não se toma outra coisa senão a simples transmissão de uma cultura geral por oposição à formação profissional. Era preciso considerar se este ensinamento da língua não mereceria ser, mais do que uma formação, uma meditação sobre o perigo que ameaça a língua, quer dizer, a relação do homem com a língua. Ora uma tal meditação revelaria ao mesmo tempo a dimensão [42] salvadora que se abriga no segredo da língua, na medida em que é ela que sempre nos conduz de um só golpe à proximidade do inefável e do inexprimível.

HEIDEGGER, M. Língua de Tradição e Língua Técnica. Tradução do francês, Mário Botas. Lisboa: Vega, 1995.

  1. Este texto reproduz um manuscrito até agora inédito — depositado no Deutsches Literaturarchiv de Marbach — da conferência que Martin Heidegger proferiu em 18 de Julho de 1962 quando de uma sessão para os professores das escolas profissionais, na Academia de Estado para a Formação Contínua, em Combourg (Schwäbich Hall). A conferência foi feita por incitação e graças à intercedência do filho de Martin Heidegger, Jörg Heidegger, que ensinava então como engenheiro diplomado numa escola profissional. 

  2. Sagan: como em Unterwegs zur Sprach, 252, Heidegger recorreu à ortografia arcaica para sublinhar aquilo que, segundo ele, é o sentido primeiro de Sagen, dizer como mostrar. 

  3. Carl Friedrich von Weizsäcker, Sprach als Information, in: Die Sprache, quinto lançamento da publicação anual Gestalt und Gedanke, Munich: Verlag R. Oldenburg 1959, p. 70.