Dois textos de Edmundo Husserl serão aqui examinados. A Krisis é posterior às Meditações cartesianas (MCH). Autorizamo-nos com um argumento de Jan Patocka (1988, p. 169) a considerá-los no sentido contrário de sua cronologia. Segundo Patocka, Husserl tinha o projeto de fazer uma exposição sistemática do programa de uma filosofia fenomenológica tomando por base um conceito aprofundado da “redução” fenomenológica; mas uma vez que a Krisis permaneceu inacabada, a “visão de conjunto mais sistemática” do programa se encontra nas MCH, mesmo que nesse texto Husserl se ache embaraçado por um ponto de partida demasiadamente cartesiano. Pode-se assim considerar que o problema da intersubjetividade humana no fundamento do conhecimento é colocado na Krisis, e que a quinta Meditação cartesiana dá um esboço de solução.
O problema é colocado na Krisis no momento em que Husserl reconsidera, depois que pelo método da épochè “todo objetivo se metamorfoseou em subjetivo”, o dilema clássico da filosofia do conhecimento: idealismo ou realismo?
“A intersubjetividade universal na qual se resolve toda objetividade, todo ente em geral, não pode manifestamente ser qualquer outra subjetividade que não a da humanidade, da qual não se poderia negar que é parte integrante do mundo. Como uma parte integrante do mundo, a subjetividade humana que ele contém, pode constituir o mundo inteiro (entendo constituí-lo como sua formação intencional)? […] O sujeito como componente do mundo engole, por assim dizer, o conjunto do mundo e, no mesmo movimento, a si mesmo. Que absurdo! Ou então não é um paradoxo que se possa resolver […].” (Krisis, § 53)
O “paradoxo da subjetividade humana” (§ 53) consiste em “ser sujeito para o mundo e, ao mesmo tempo, ser objeto no mundo”. Há uma tal correlação entre dois “polos” (subjetivo/objetivo) que, do ponto de vista da atitude natural (bom senso), o sujeito está no mundo e, do ponto de vista da atitude fenomenológica (filosófica), o mundo está no sujeito.
A “resolução do paradoxo” (§ 54) se inicia pelo anúncio de que a subjetividade que constitui o mundo é “nós todos”, “a comunidade dos humanos”, e que será preciso enfrentar o problema da “mudança de significação do ego”, isto é, a passagem do ego individual para o ego coletivo, a “constituição da intersubjetividade”. Mas aqui Husserl não consegue deixar a intersubjetividade empírica para “saltar” na intersubjetividade “transcendental”; ele chega a explicar que saltar demasiado rapidamente seria um erro de método. Com efeito, o ato pelo qual cada um de nós entra em filosofia, o ato radical de redução, a épochè, é um ato pessoal, individual, que conduz a uma “solidão filosófica de um gênero único”, uma vez que reduz à fenomenalidade tudo o que faz para cada um o mundo objetivo, inclusive os outros seres humanos. Uma vez que o polo egológico da épochè inicial é esse eu singular, esse eu não tem o direito de se estender a toda a humanidade, de dizer simplesmente “eu somos nós todos” — é o erro de método que não pode ser cometido. Isso não implica que falar de “intersubjetividade transcendental” seja um engano, mas implica que o caminho para a intersubjetividade transcendental é longo e complicado, porque é preciso chegar a essa intersubjetividade a partir da solidão do ego, na intencionalidade do ego, que de sua “esfera primordial” deverá fazer com que cheguem à posição de outros eu seres que ele havia em um primeiro tempo fenomenalizado.
Esse encaminhamento exige uma retomada da épochè (§ 55), um retorno à “subjetividade operante” cuja meditação (“automeditação”) já permite relativizar o que chamamos de objetividade do saber científico da natureza, antes mesmo de abordar as questões que vislumbramos temíveis da constituição de uma real intersubjetividade: até onde vai se estender à coletividade intersubjetiva? Todos os seres “conscientes” (empiricamente) são potencialmente sujeitos da comunidade transcendental (inclusive os loucos, as crianças, os animais)?; e o que fazer da temporalidade dos sujeitos que nascem e morrem, de sua sexualidade, do inconsciente, etc.? Na Krisis, o caminho para a intersubjetividade transcendental se perde no exame da psicologia, mesmo se a conclusão presume que o objetivo foi atingido.
Todos se lembram que o início da Krisis (§ 1-27) tem por base um texto publicado por Husserl em 1936, que a continuação (§ 28-71) é uma transcrição de Eugen Fink de um estenograma do mestre, e que o parágrafo de conclusão — § 73: “A filosofia como automeditação da humanidade, auto-efetuação da razão” —, que vem de um outro manuscrito, foi acrescentado pelo editor, Walter Biemel, porque se acorda com o “projeto de continuação da Krisis” de Fink. Esse § 73 diz que a responsabilidade da filosofia é superar o objetivismo naturalista das ciências da natureza e constituir uma verdadeira ciência do mundo, que só se autorize a partir de afirmações radicalmente fundamentadas (certas, apodícticas) e mantenha sempre em seu horizonte o “todo do ser” — que relativiza tudo o que pode sê-lo. Essa tarefa infinita, jamais acabada, é “o combate permanente da razão “despertada” para alcançar a si mesma”; dito de outro modo, “a filosofia não é outra coisa senão o racionalismo” e a história da filosofia é a do advento progressivo da racionalidade que torna possível o acesso da humanidade a uma “autonomia pessoal”. Pois estamos em uma “comunidade egológica”, o “mundo” é “o que nos é comum”, e a compreensão de nosso mundo é “intrinsecamente comunitária” — mesmo que “a experiência comunitária” seja conflituosa e confusa. Uma frase longa e alambicada — de uma página inteira — explicita o projeto:
“A tarefa que a filosofia se impõe […] é uma ciência universal do mundo […] do mundo “em si.” [Essa tarefa começa pela] compreensão de si do Ego filosofante enquanto portador da Razão absoluta vindo a si mesma, isto é, de si mesmo à medida que em seu ser-para-si-mesmo apodíctico ele implica seus co-sujeitos e todos os co-filósofos possíveis — a descoberta da intersubjetividade absoluta — objetivada no mundo como o todo da humanidade -[…]; [ela continua com] a descoberta dos modos de ser concretos necessários da subjetividade absoluta (a subjetividade transcendental no sentido último) em uma vida transcendental constantemente “constitutiva do mundo” e, no mesmo movimento, [com] a descoberta correlativa e nova do “mundo que é”, cujo sentido de ser, enquanto transcendentalmente constituído, dá um novo sentido àquilo que, nos níveis anteriores, chamava-se mundo, chamava-se verdade do mundo, chamava-se consciência do mundo […]”. (Krisis (1954), § 73)
Essa página que encerra a Krisis fala de uma “humanidade que se compreende a si mesma racionalmente, compreendendo que ela é racional no querer-ser racional”. Será que isso significa que cada ego filosofante porta em si “a forma inteira da humana condição” (Montaigne), o que nos remeteria ao racionalismo mais clássico? Ou será preciso compreender que há uma real interação dos egos filosofantes no seio da qual se constrói uma racionalidade comum? Nesta segunda hipótese, são necessários esclarecimentos sobre o modo como a intersubjetividade filosofante se constitui e funda apodicticamente o empreendimento de conhecimento científico. A Krisis é muda quanto a esse ponto.
A quinta Meditação cartesiana é intitulada: “Determinação do domínio transcendental como ‘intersubjetividade monadológica’”. Ela parte da “solidão filosófica” (§ 42). Fundar a filosofia sobre um ego cogito (eu sou pensante) equivale a cair no solipsismo? Dizendo de outro modo, os outros são minhas representações? Não é assim que os represento para mim — não os represento para mim como representações em mim —: eu os represento para mim como outros que não eu (outros eu). Essas experiências — da existência de outrem, da presença do alter ego — são “fatos transcendentais de minha esfera fenomenológica”.
Aprofundemos essa experiência dos “outros” (§ 43). Os outros são por mim percebidos ao mesmo tempo como objetos do mundo e como outros sujeitos que têm a experiência do mesmo mundo e de mim em seu mundo como sujeito outro que não eles mesmos. O mundo “objetivo” é, portanto, e de fato, de uma certa maneira, vivido como uma realidade intersubjetiva: ele é o que existe para todos os sujeitos. Nesse mundo, encontramos objetos naturais (como árvores) e culturais (como livros), estes últimos remetendo a sujeitos (autores) que os fizeram para outros sujeitos.
Não se trata de negar que vivemos as coisas assim: “O mundo objetivo já está sempre aí, pronto” (§ 48), os outros estão aí, e a filosofia não recria o mundo diferentemente do que ele é. Husserl precisa isso para prevenir contra a objeção de que ele fracassa em tirar do eu os outros e, de outrem, o mundo. Sua meta — a de uma fenomenologia — é resolver “os problemas da possibilidade do conhecimento objetivo”. Para fazer isso, diz ele, só posso partir do que tenho, do que me é dado, de minha experiência: vivo as coisas assim — não confundo eu e o resto, sei distinguir meu ser próprio que conheço do interior (minha coenestesia, minha subjetividade psicossomática) do que me é estranho e que só conheço do exterior. A épochè fenomenaliza tudo isso mas, de modo algum, anula as diferenças de qualidade de experiência: “A explicitação fenomenológica não faz outra coisa […] senão explicitar o sentido que este mundo tem para nós todos, anteriormente a qualquer filosofia” (§ 62).
“O problema [dos “outros”] se apresenta primeiramente como um problema especial, colocado para o sujeito, da existência de outrem para si, e, portanto, como problema de uma teoria transcendental da experiência do outro […]. Mas o alcance de uma tal teoria logo se revela como sendo muito maior do que parece à primeira vista: ele dá, ao mesmo tempo, as bases de uma teoria transcendental do mundo objetivo […]. Pertence ao sentido da existência do mundo e, entre outros, ao sentido da ‘natureza’ enquanto natureza objetiva, existir para cada um de nós, caráter sempre co-entendido a cada vez que falamos de realidade objetiva.” (MCH 5, § 43)
A ordem na qual se opera o procedimento é constantemente reivindicada por Husserl como a única possível, tanto como ordem da constituição da objetividade — gênese psico-biológico-ontogenética e fundamento transcendental — quanto como ordem das disciplinas filosóficas -gênese cultural —, quando ele explica que a fenomenologia transcendental é uma “autêntica ontologia universal”:
“[Depois desses esclarecimentos] não é de modo algum enigmático que eu possa constituir em mim um outro eu, ou, para falar de uma maneira ainda mais radical, que eu possa constituir em minha mônada uma outra mônada e, uma vez constituída, apreendê-la precisamente na qualidade de outra; compreendemos também esse fato, inseparável do primeiro, de que posso identificar a Natureza constituída por mim com a Natureza constituída por outrem — ou, para falar com toda a precisão necessária, com uma Natureza constituída em mim, na qualidade de constituída por outrem.” (MCH 5, § 55) “Essa ontologia universal e concreta — ou essa teoria das ciências concreta e universal, essa lógica concreta do ser — apresentaria o universo das ciências, primeiro em si, e tendo um fundamento absoluto. A ordem das disciplinas filosóficas seria a seguinte: primeiramente, a egologia “solipsista”, a do ego reduzido à esfera primordial; em seguida, viria a fenomenologia intersubjetiva, fundada na egologia solipsista. Esta última estuda primeiramente as questões universais, para se ramificar posteriormente em ciências apriorísticas particulares. Essa ciência total do a priori seria então o fundamento das ciências empíricas autênticas, e de uma filosofia universal autêntica, no sentido cartesiano de uma ciência universal e com fundamento absoluto do que existe de fato.” (MCH 5, § 64)
A constituição transcendental da intersubjetividade, ela própria constitutiva do “mundo”, ou “natureza”, se faz por etapas:
1) O ponto de partida está no interior do Ego transcendental -“eu, mônada primordial para mim mesmo”: § 56 — e de seus fenômenos — “transcendência imanente”§ 48. No interior de si (de seus fenômenos), o Ego isola uma mônada estranha, cujos comportamentos dão índices concordantes que lhe permitem atribuir a ela, por analogia consigo, o estatuto de organismo que possui estados internos — i. e., esse ser existe para si como eu para mim -; essa comunidade (comunhão, coexistência) condiciona a existência de um mundo “comum” se, e somente se, houver interação (comércio):
“Meu ego, dado a mim mesmo de uma maneira apodíctica -único ser que posso colocar como existente de uma maneira absolutamente apodíctica -, só pode ser um ego que tem a experiência do mundo se estiver em comércio com outros egos, seus semelhantes, se for membro de uma sociedade de mônadas […].” (MCH 5, § 60)
2) Ao explicitar sua representação de outrem, o Ego descobre que o Outro o constitui como mônada, como ele próprio o constitui como mônada: é a descoberta da reciprocidade, “existência recíproca de um para o outro” (§ 56), ou “intercomunhão”.
3) A comunidade se estende a uma “multiplicidade ilimitada” de seres vivos (“animalia”), e é essa “comunidade ilimitada de mônadas que designamos com o termo de intersubjetividade transcendental”. (MCH 5, § 56)
4) As comunidades de mônadas humanas constituem para si mundos culturais que são concretizações parciais do equivalente fenomenológico da interpenetração dos sujeitos, isto é, “a experiência apresentativa do outro”, base da socialidade.
5) Não é “imaginável” nem “concebível” — “puro não-senso”, pois é o mesmo Ego que os constitui — que vários grupos de mônadas coexistam separados, sem se comunicar entre si: os mundos culturais têm uma certa especificidade, mas ali como alhures não há coexistência sem interação.
“Só é, portanto, possível haver, na realidade, uma única comunidade de mônadas, a de todas as mônadas existentes; consequentemente, um único mundo objetivo, um e apenas um tempo objetivo, um único espaço objetivo, uma única Natureza.” (MCH 5, § 60)
À objeção de que só pode afirmar a unidade da Natureza sob a condição de introduzir sub-repticiamente o Deus de Leibniz para sair da subjetividade e reunir seu mundo, Husserl responde que não saiu da subjetividade, que em momento algum abandonou a atitude transcendental. Ele havia dito que a fenomenologia é um idealismo transcendental (§ 49), ele o repete (§ 62): “Comecei”, diz ele, por explicitar “o que me pertence de modo próprio, a fim de compreender que, no ‘próprio’, o ‘não-próprio’ adquire também seu sentido existencial, especialmente por analogia. […] A aparência do solipsismo se dissipa, embora permaneça verdadeiro que tudo o que existe para mim só pode retirar seu sentido existencial para mim, na esfera de minha consciência”. (§ 62)
Essa maneira de tirar a intersubjetividade da subjetividade não é muito tranquilizadora. Eu certamente não gostaria de ver o Outro animar-se, tocar-me, sacudir-me, ser um centro de iniciativa, em vez de permanecer uma formação de sentido relativa a meu ser “próprio”? Uma comunicação interativa real não valeria muito mais do que implicações intencionais recíprocas? Alguns próximos de Husserl se expressaram sobre esse ponto.
Compreende-se o que está em jogo. A esperança é transferir a apodicticidade — a certeza absoluta via comunidade dos sujeitos, para a unidade do mundo. Porém, em primeiro lugar, Husserl concede demasiado facilmente a apodicticidade à apreensão reflexiva de si; em seguida, a construção do outro por analogia a partir de si é fantasmática; enfim, tirar o mundo da concordância (inverificável) das experiências é inverossímil. Sem qualquer dúvida, a objetivação progressiva do mundo pelo conhecimento científico repousa, em um sentido, sobre a interação dos sujeitos do conhecimento. Mas como comenta Patocka (1985, p. 185), “a antecipação de um mundo único é um dos pressupostos fundamentais da experiência em geral (e da comunicação intersubjetiva)”. Ela não é o resultado de uma construção.
De todo modo, o “transcendental” de Husserl não tem muito a ver com o de Kant. Quando Kant regressa para o eu da apercepção transcendental como condição de possibilidade da atividade sintética do entendimento — “o eu penso deve poder acompanhar todas as minhas representações” ele chama de unidade transcendental da consciência o que faz com que minhas representações estejam ligadas na unidade do sujeito. O acesso ao transcendental kantiano é um procedimento regressivo e não uma gênese, ao passo que, em Husserl (MCH 5), estamos entre o fundamento e a gênese.
Patocka se apoia no § 50 da Krisis para dizer que, em certos momentos, o próprio mestre admitiu que se pode abandonar a ideia de um fundamento absoluto no Ego e ver o procedimento fenomenológico antes como oscilando entre dois polos: um polo egológico (subjetivo) e um polo objetivo (o “mundo da vida”). Patocka gostaria de libertar a fenomenologia do subjetivismo, construir uma “fenomenologia assubjetiva”, que partiria de uma análise dos “modos de aparição do ente”, e a emergência do ego para si se faria sobre o fundo da experiência do mundo, que é primeira — relativização do subjetivo.
No famoso § 50, entretanto, após ter sugerido que o polo mundano talvez tenha tanta solidez quanto o polo subjetivo, Husserl faz intervir um terceiro polo: “Mas tudo se complica logo que atentamos para o fato de que a subjetividade só é o que é — um ego constitutivamente funcionando — na intersubjetividade”.
A “síntese ‘eu-tu’” e a “síntese ‘nós’” pressupõem a “simultaneidade dos polos egológicos”, ou “socialidade universal […] enquanto espaço de todos os sujeitos egológicos”. Há, portanto, uma dupla bipolaridade: de um lado, a do eu e de seu mundo, de outro lado, a do coletivo humano e do indivíduo. O parágrafo termina com um alusão enigmática a uma “síntese intersubjetiva” que forma uma “comunidade do nós” “orientada no mundo comum”. Mas permanecemos na incerteza quanto à maneira como essa tríade (eu-nós-“mundo da vida”) garante quer a unidade “transcendental” do conhecimento, quer uma intersubjetividade verdadeira.
[Anne Fagot-Largeault, em Daniel Andler, Anne Fagot-Largeault e Bertrand Saint-Sernin, Filosofia da Ciência]