Husserl – A intuição das essências

(Ideias Diretrizes para uma Fenomenologia, trad. P. Ricoeur, ed. Gallimard, 1950, pp. 19-24).

Primeiramente, a palavra «essência» designou aquilo que, no ser mais íntimo de um indivíduo, se apresenta como o seu Quid. Ora este Quid pode ser sempre posto em ideia. A intuição empírica ou intuição do indivíduo pode ser convertida em visão da essência (em ideação) — devendo esta possibilidade mesma ser entendida não como possibilidade empírica mas como possibilidade no plano das essências. O termo da visão é então a essência pura correspondente ou Eidos, seja a categoria de grau superior ou uma forma mais particular, descendo até ao último concreto.

Esta visão que dá a essência, e a dá, eventualmente, de forma originária, pode ser adequada, como a que podemos facilmente formar da essência do som; mas também pode ser mais ou menos imperfeita, inadequada, sem que esta diferença de adequação se deva unicamente ao maior ou menor grau de clareza e de distinção. A especificação própria de certas categorias de essências implica que as essências desta ordem não possam ser dadas senão sob uma face, «sob várias faces» sucessivamente, mas nunca «sob todas as suas faces»; correlativamente, não se pode ter experiência e representação das ramificações individuais correspondentes a estas essências senão nas intuições empíricas inadequadas e «unilaterais». É a regra para qualquer essência que se relaciona à ordem das coisas, tendo em conta todas as componentes eidéticas da extensão ou da materialidade; é mesmo a regra, se virmos melhor (como as análises ulteriores o mostrarão com evidência), para todas as realidades naturais em geral. Neste caso as expressões vagas de face única e múltipla receberão significações determinadas e poderão distinguir-se diferentes tipos de inadequação.

Basta provisoriamente indicar que já a forma espacial da coisa física não pode dar-se senão em simples esquemas unilaterais; e que, se abstrairmos desta inadequação que persiste por mais que o fluxo contínuo das intuições progrida e apesar de todos os avanços, cada propriedade física nos leva mesmo até ao infinito da experiência; e o diverso da experiência por mais vasto que seja, ainda deixa lugar para novas e mais precisas determinações da coisa; e assim até ao infinito. Seja qual for o tipo a que pertence a intuição do indivíduo, adequada ou não, pode converter-se em visão da essência; esta mesma visão, correspondentemente adequada ou inadequada, tem o carácter de um ato doador. Por conseguinte:

A essência (Eidos) é um objeto de um novo tipo. Tal como na intuição do indivíduo ou intuição empírica o dado é um objeto individual, assim o dado da intuição eidética é uma essência pura.

Não se trata de uma simples analogia exterior mas de uma comunidade radical. A intuição das essências é também ela uma intuição e o objeto eidético também ele um objeto. Esta generalização dos conceitos solidários e correlativos de «intuição» e de «objeto» não é uma ideia arbitrária; é imperiosamente exigida pela natureza das coisas. A intuição empírica, especialmente a experiência, é a consciência de um objeto individual; pelo seu carácter intuitivo, «ela faz aceder o objeto à categoria de dado»; pelo seu carácter de percepção, faz dele um dado originário; por ela, temos consciência de captar o objeto «de maneira originária», na sua ipseidade «corporal». Do mesmo modo, a intuição da essência é a consciência de algo, de um «objeto», de qualquer coisa sobre a qual se dirige o olhar da intuição e que é dado em pessoa» nessa intuição; mas este objeto pode ainda ser «representado» em outros atos, pensado de maneira vaga ou distinta, tomado como sujeito de juízos predicativos verdadeiros ou falsos — precisamente como qualquer «objeto», no sentido necessariamente lato que esta palavra tem em lógica formal. Tudo o que pode ser objeto, ou, para falar como lógico, «todo o sujeito possível de juízos predicativos verdadeiros», tem uma maneira própria de encontrar, antes de qualquer pensamento predicativo, o olhar da representação, da intuição, que o atinge eventualmente na sua «ipseidade corporal», o olhar que o «capta». A visão da essência é, portanto, uma intuição; e se ela é uma visão em sentido forte e não uma simples e talvez presentificação, ela é uma intuição doadora originária que capta a essência na sua ipseidade «corporal». Mas, por outro lado, a intuição é, por princípio, de um tipo original e novo, se se confronta com os tipos de intuição que têm por correlatos objetividades submetidas a outras categorias, entre outras com a intuição no sentido restrito habitual, isto é, com a intuição do indivíduo.

Sem dúvida nenhuma, a intuição da essência tem isto de particular, que supõe na sua base uma parte importante de intuição aplicada ao indivíduo, a saber que um indivíduo apareça, que se tenha dele uma perspectiva; mas este indivíduo não é nem captado, nem, de nenhum modo, posto como realidade; por conseguinte, é certo que não há intuição da essência se o olhar não tem a livre possibilidade de se virar para um indivíduo «correspondente» e se não se pode formar, para ilustrá-lo, uma consciência de exemplo; do mesmo modo, em contrapartida, não há intuição do indivíduo sem que se possa operar livremente a ideação e, ao fazê-lo, dirigir o olhar sobre a essência correspondente que a visão do indivíduo ilustra com um exemplo; mas isto não impede que os dois tipos de intuições sejam por princípio diferentes; e nas proposições como as que acabam de ser enunciadas são somente as suas relações eidéticas que se declaram. A estas diferenças eidéticas entre as intuições correspondem as relações eidéticas mútuas entre a «Existência» tomada aqui manifestamente no sentido da existência do indivíduo) e a «Essência», entre o Fato e o Eidos. Se continuarmos este gênero de conexões, captamos com evidências as essências conceptuais que pertencem a estas expressões e lhes estão doravante solidamente ligadas, e pode-se assim eliminar definitivamente e radicalmente todos os pensamentos em parte místicos que aderem sobretudo aos conceitos de Eidos (de Ideia) ou de Essência.