Husserl – Contingência da «tese» do mundo

(Ideias Diretrizes para uma Fenomenologia, trad. P. Ricoeur, ed. Gallimard, 1950, pp. 148-151).

Toda a percepção imanente garante necessariamente a existência do seu objeto. Quando a reflexão se aplica ao meu vivido para o captar, captei um absoluto em si mesmo, cuja existência não pode por princípio ser negada; por outras palavras, a ideia de que a sua existência não seja é por princípio impossível; seria um absurdo julgar possível que um vivido dado desta maneira não exista verdadeiramente. O fluxo do vivido, que é o meu fluxo, o do sujeito pensante, pode ser, tanto quanto quisermos, não apreendido, desconhecido quanto às partes já decorridas e às que estão para vir; basta que lance o olhar sobre a vida que se desenrola na sua presença real e que neste ato me capte a mim mesmo como o sujeito puro desta vida (o que esta expressão significa ocupar-nos-á expressamente um pouco mais tarde), para que eu possa dizer sem restrição e necessariamente: Eu sou, esta vida é, eu vivo: cogito.

Todo o fluxo vivido, todo o eu enquanto tal, implica a possibilidade de princípio de alcançar esta evidência; cada um traz em si mesmo a garantia da sua existência absoluta, a título de possibilidade de princípio. Perguntar-se-á: não se poderá formar a ideia de um eu que não tivesse senão imagens no fluxo do seu vivido, de um fluxo vivido que não consistisse senão em intuições do tipo da ficção? Este eu não descobriria, então, senão ficções de cogitationes; os seus atos de reflexão, dada a natureza do meio constituído por este vivido, seriam unicamente reflexões na imaginação. Isto é um manifesto absurdo. O que flutua em suspenso diante do espírito pode ser um puro fictum; o ato mesmo da evocação flutuante, a consciência que forma a ficção, não é ela mesma fictícia e a sua essência, como todo o vivido, implica a possibilidade de uma reflexão que percepcione e capte a existência absoluta. Não há absurdo em que todas as consciências estranhas que eu ponho na experiência por intropatia possam não ser. Mas a minha intropatia e a minha consciência em geral são dadas de maneira originária e absoluta, não somente quanto à essência mas também quanto à existência. Esta notável propriedade vale somente para o eu e para o fluxo do vivido na sua relação consigo mesmo; somente aí existe e deve existir algo como uma percepção imanente.

Pelo contrário, é da essência do mundo das coisas, como sabemos, que nenhuma percepção, por muito perfeita que seja, dá no seu domínio um absoluto; do que resulta essencialmente que toda a experiência, por mais vasta que seja, deixa subsistir a possibilidade de que o dado não exista, apesar da consciência persistente da sua presença corporal e em pessoa. Podemos enunciar esta lei de essência: a existência das coisas não é nunca requerida como necessária pelo seu próprio dado; é, de uma certa forma, sempre contingente. O que significa: é sempre possível que o curso ulterior da experiência obrigue a abandonar o que anteriormente foi posto sob a autoridade da experiência. Era, diz-se depois, uma pura ilusão, uma alucinação, um simples sonho coerente, etc. Acontece, além disso — e é uma possibilidade permanente — , que se produz neste círculo de dados algo como uma alteração das apreensões, uma brusca mudança de uma aparência numa nova que não pode unir-se a ela de maneira convergente e que, assim, a posição da experiência ulterior reaja sobre a experiência anterior, de tal modo que os objetos intencionais desta experiência anterior sejam, por assim dizer, rearranjados retroativamente; tais processos são, por essência, excluídos da esfera do vivido. Já não há lugar na esfera absoluta para o conflito, o simulacro, a alteridade. É uma esfera de posição absoluta.

É, portanto, claro, em qualquer caso, que tudo o que, no mundo das coisas, está aí para mim não é, por princípio, senão uma realidade presuntiva; pelo contrário, eu mesmo para quem o mundo está aí (excluindo o que é posto «por mim» como sendo do mundo das coisas) ou, se quisermos, a atualidade do meu vivido é uma realidade absoluta; ela é dada por meio de uma posição incondicionada e absolutamente irrecusável.

A «tese» do mundo que é uma tese «contingente» opõe-se à tese do meu eu puro e do meu vivido pessoal, que é «necessária» e absolutamente indubitável. Toda a coisa dada corporalmente pode igualmente não ser; nenhum vivido dado corporalmente tem a possibilidade de não ser igualmente: tal é a lei da essência que define esta necessidade e esta contingência.