Husserl – Intencionalismo

Na percepção algo é percepcionado, na imaginação algo é imaginado, na enunciação algo é enunciado, no amor algo é amado, no ódio algo é odiado, no desejo algo é desejado, etc. Franz Brentano discerniu o carácter comum que pode encontrar-se em tais exemplos quando disse: «Todo fenômeno psíquico é caraterizado pelo que os escolásticos da Idade Média denominaram a existência intencional (ou ainda mental) de um objeto, e o que nós poderíamos chamar, se bem que com expressões um pouco equívocas, a relação com um conteúdo, a orientação para um objeto (que não deve entender-se como uma realidade) ou a objetidade imanente. Todo fenômeno psíquico contém em si mesmo alguma coisa como objeto, se bem que cada um o contenha à sua maneira.» […]

O objeto da representação, da «intenção», é e significa: o objeto representado, o objeto intencional. Que represente Deus ou um anjo, um ser inteligível em si ou uma coisa psíquica ou um quadrado circular, etc., o que, assim, denominamos o transcendente é justamente o que é visado, logo (simplesmente e por outras palavras), é objeto intencional; pouco importa na emergência que tal objeto exista, seja fictício ou absurdo. Quando dizemos que o objeto é «simplesmente intencional», não queremos naturalmente dizer: ele existe, ainda que apenas na intentio (portanto como componente real desta), nem tão-pouco: existe nesta alguma sombra de objeto; mas queremos, sim, dizer: o que existe é a intenção, o visar de um objeto de tal sorte, mas não o objeto. Se, pelo contrário, o objeto intencional existe, não é só a intenção, o ato de visar, que existe, mas também o que é visado.

E. Husserl, Recherches logiques, trad. de H. Élie, 1960.


Realizada de maneira sistemática e concreta, a fenomenologia é idealismo transcendental, se bem que em acepção fundamentalmente nova. Não o é no sentido de um idealismo psicológico que, a partir dos dados sensíveis desprovidos de sentido, pretenda deduzir um mundo cheio de sentido. Não é um idealismo kantiano que julga poder deixar aberta a possibilidade de um mundo de coisas em si, quanto mais não seja a título de conceito-limite. É um idealismo que não é mais que uma explicitação do meu ego enquanto sujeito de conhecimentos possíveis. Uma explicitação consequente, realizada na forma de ciência egológica sistemática, tendo em consideração todos os sentidos existenciais possíveis para mim, como ego. Este idealismo não é formado por um jogo de argumentos e não se opõe numa luta dialéctica a nenhum «realismo». É a explicitação do sentido de todo tipo de ser que eu, o ego, posso imaginar; e, mais especialmente, do sentido da transcendência que a experiência me dá realmente: a da natureza, da cultura, do mundo, em geral; o que quer dizer: desvendar de uma maneira sistemática a própria intencionalidade constituinte. A prova deste idealismo é a fenomenologia mesma.

E. Husserl, Méditations Cartésiennes, trad. de G. Peiffer e E. Lévinas, 1947.