Husserl – A constituição operada pela consciência

Lógica Formal e Lógica Transcendental, trad. S. Bachelard, Presses Universitaires de France, pp. 327-329

A referência universal de tudo o que é concebível para um eu à vida da sua consciência é, sem dúvida, bem conhecida já desde Descartes como um fato filosófico fundamental e dela se fala muito, em particular na época moderna. Mas não serve de nada filosofar por alto sobre este tema e esconder esta referência à consciência com redes de pensamento — por muito sutilmente imaginadas que sejam — em vez de penetrar os seus conteúdos concretos prodigiosos e de os tornar fecundos de maneira realmente filosófica. Aquele que filosofa deve, desde o começo, trazer à luz o que, com boas razões, sublinhamos tão fortemente e tão frequentemente: que tudo o que para o filósofo deve ser e deve ser isto ou aquilo, logo tudo o que, para ele, deve poder ter sentido e validade, tem que estar presente à sua consciência sob a forma de uma efetuação intencional própria, correspondente à singularidade deste existente, e isto por uma doação de sentido própria (como eu também dizia nas minhas Ideen…). Não se pode ficar na generalidade vazia da expressão: consciência, ou nas palavras vazias: experiência, juízo, e outras deste gênero, e abandonar rigorosamente o resto, como se não dissesse respeito à filosofia, à psicologia — àquela psicologia que partilha da cegueira perante a intencionalidade enquanto carácter essencialmente próprio da vida da consciência ou, em todo o caso, pela intencionalidade enquanto função teleológica, isto é, efetuação constitutiva. A consciência deixa-se desvendar metodicamente, de maneira que se pode «ver» diretamente na sua atividade doadora de sentido e criando sentido com modalidades de ser. Podem-se seguir as transformações seguintes: como é que o sentido objetivo (o cogitatum das cogitationes que se consideram) toma a forma de um novo sentido quando estas cogitationes trazem modificações ao conjunto das cogitationes que desempenham um papel de motivação a seu respeito? Como é que o que está já presente se formou anteriormente a partir de um sentido de base que provém de uma efetuação anterior? Se com exemplos tomados ao acaso tivermos desenvolvido fragmentos de tais explicações intencionais, reconhecemos imediatamente que não podemos esgotar a imensa tarefa que consiste em pôr a nu na sua universalidade esta vida efetuante e tornar assim compreensíveis, na unidade ôntica universal da vida cultural (e isto, finalmente, a partir das suas origens constitutivas), todas as formações de sentido da vida cultural natural, da vida cultural científica, de toda a vida cultural superior (intervindo todas estas formações nesta vida cultural enquanto «existente»).

Decerto, para tal tarefa, deveria primeiro instituir-se o método, tendo em conta que, curiosamente, a descoberta, por Brentano, da intencionalidade nunca conduziu a que se visse nela um conjunto de efetuações que, na unidade intencional constituída que consideramos e nos seus modos de dado, estão implicadas como uma história sedimentada, história que se pode, em cada caso, pôr a descoberto com um método rigoroso. Graças a este conhecimento fundamental, toda a espécie de unidade intencional se torna o fio condutor transcendental das «análises» constitutivas e estas próprias análises adquirem, devido a este conhecimento fundamental, um carácter absolutamente específico; não são análises no sentido habitual (análises reais), mas o pôr a descoberto implicações intencionais (progredindo por exemplo de uma experiência até ao sistema das experiências indicadas como possíveis).