Husserl – A intencionalidade da consciência

(Investigações Lógicas, II, 2.a parte, trad. H. Élie, A. L. Kelkel e R. Schérer, Presses Universitaires de France, pp. 168-171).

Na percepção, algo é percepcionado, na imaginação, algo é imaginado, na enunciação algo é enunciado, no amor, algo é amado, no ódio, algo é odiado, no desejo, algo é desejado, etc. Brentano tem em vista o carácter comum que pode ser captado em tais exemplos, quando diz: «Todo o fenômeno psíquico é caracterizado por aquilo que os escolásticos da Idade Média chamaram existência intencional (ou ainda mental) de um objeto, e o que nós poderíamos chamar, ainda que com expressões algo equívocas, a relação a um conteúdo, a orientação para um objeto (pelo qual não é preciso entender uma realidade) ou a objetividade imanente. Todo o fenômeno psíquico contém em si mesmo qualquer coisa como objeto, ainda que cada um o contenha à sua maneira». Este «modo de relação da consciência ao seu conteúdo» (como frequentemente Brentano o exprime noutras passagens) é precisamente, na representação, o modo representativo, no juízo, o modo judicativo, etc. Como se sabe, a tentativa de classificação, por Brentano, dos fenômenos psíquicos em representações, juízos e movimentos afetivos («fenômenos de amor e de ódio») funda-se sobre este modo de relação no qual Brentano distingue, três formas fundamentalmente diferentes (que, eventualmente, se especificam de múltiplas maneiras).

Não se trata aqui de saber se consideramos pertinente esta classificação dos «fenômenos psíquicos» de Brentano, nem sequer se lhe reconhecemos essa significação fundamental para a edificação de toda a psicologia que o seu genial autor reivindicou. Há somente uma coisa importante aos nossos olhos e que conservamos: é que existem variedades específicas essenciais da relação intencional ou, em suma, da intenção (que constitui o carácter genérico descritivo do «ato»). O modo segundo o qual uma «simples representação» de um estado de coisas visa esse «objeto» que é o seu é diferente do modo do juízo que considera esse estado de coisas como verdadeiro ou falso. Completamente diferentes são, por sua vez, o modo da suposição e da dúvida, o modo da esperança ou do temor, o modo da satisfação e do desprazer, do desejo e da repugnância, da decisão perante uma dúvida teórica (decisão judicativa) ou de uma dúvida prática (decisão volitiva no caso de uma escolha deliberada); da confirmação de uma intenção teórica (cumprimento de uma intenção judicativa) ou de uma intenção volitiva (cumprimento da intenção volitiva). E assim por diante. Decerto, a maior parte dos atos, se não todos, são vividos complexos e as suas próprias intenções, muito frequentemente, múltiplas. Intenções afectivas têm como base intenções de representações ou de juízos, etc. Mas não há dúvida de que, quando decompomos estes complexos, chegamos sempre a caracteres intencionais primitivos que não podem reduzir-se, quanto à sua essência descritiva, a vividos psíquicos de outro tipo; e não há, de novo, dúvida que a unidade do gênero descritivo «intenção» («carácter de ato») apresenta diversidades específicas fundadas na essência pura deste gênero e precede, assim, a faticidade psicológica empírica à maneira de um a priori. Há espécies e subespécies essencialmente diversas da intenção. Tanto mais quanto é igualmente impossível reduzir todas as diferenças entre os atos a diferenças entre as representações e os juízos que neles estão implicados recorrendo simplesmente a elementos que não pertencem ao gênero intenção. É assim, por exemplo, que a aprovação ou desaprovação estética é um modo de relação intencional, que aparece como evidente e de uma essência particular, comparada à simples representação ou ao simples juízo teórico sobre o objeto estético. A aprovação estética e o predicado estético podem, é verdade, ser enunciados e o enunciado é um juízo que, como tal, implica representações. Mas então a intenção estética, tal como o seu objeto, é objeto de representações e de juízos; ela própria permanece essencialmente diferente destes atos teóricos. Atribuir valor de exatidão a um juízo, apreciar a nobreza de um vivido afectivo, etc., supõe, certamente, intenções análogas e aparentadas, mas não especificamente idênticas. O mesmo se passa se se compara as decisões do juízo às decisões da vontade, etc.

Concebemos a relação intencional, compreendida num sentido puramente descritivo enquanto característica intrínseca de certos vividos, como uma determinação de essência dos «fenômenos» ou «atos psíquicos», de modo que vemos na definição de Brentano, segundo a qual eles seriam «fenômenos que encerram intencionalmente um objeto», uma definição essencial cuja «realidade» (no sentido antigo desta palavra) é naturalmente garantida pelos exemplos. Por outras palavras, e ao mesmo tempo de um ponto de vista puramente fenomenologias: é a ideação efetuada sobre casos singulares exemplares de tais vividos — e efetuada de tal maneira que toda a concepção ou posição de existência empírico–psicológica permanece fora de causa entrando em linha de conta somente o conteúdo fenomenológico real desses vividos — é essa ideação que nos dá a ideia genérica puramente fenomenológica de vivido intencional ou de ato, como também, depois, as suas especificações puras. Que nem todos os vividos sejam intencionais é o que testemunham as sensações e as complexões de sensações. Qualquer fragmento do campo visual, quando sentido, seja qual for a maneira como ele possa ser preenchido por conteúdos visuais, é um vivido que pode conter todas as espécies de conteúdos parciais, mas estes conteúdos não são, de nenhum modo, objetos visados pelo todo, isto é, contidos intencionalmente nele.