Cerbone – Husserl e a desanalogia entre tipos de coisas

David R. Cerbone. Fenomenologia. Tradução de Caesar Souza

Podemos encontrar em Husserl uma outra linha de argumento que desafia a viabilidade de uma descrição científica natural da consciência e, desse modo, depõe contra o naturalismo como uma perspectiva filosófica adequada. Esse argumento origina o que Husserl considera ser uma desanalogia entre os tipos de coisas com as quais as ciências naturais se ocupam e os tipos de coisas em que consiste a consciência. Considere primeiro o domínio das ciências naturais. Aqui, temos, dentre outras coisas, o que chamaremos simplesmente de “objetos físicos”. Podemos discernir alguma coisa importante sobre a natureza dos objetos físicos mesmo se nos restringirmos à experiência perceptual ordinária. Uma coisa que é verdadeira sobre objetos físicos (ou ao menos aqueles que são grandes o bastante para vermos) é que eles podem ser vistos por mais de um lado. Se eu seguro uma pedra diante de mim, eu posso girá-la de vários modos, e, assim, a pedra apresenta diferentes lados para o conforto de minha visão. Além disso, não existe modo algum de virar a pedra que me permita vê-la em sua totalidade em qualquer tempo dado, e, na verdade, não está claro o que uma experiência perceptual completa da pedra possa envolver; sempre existem mais ângulos a partir dos quais olhar para a pedra, mais distâncias da pedra às quais eu posso estar, mais variações nas condições de luminosidade, e assim por diante. Implícita na experiência perceptual de objetos físicos está a noção de infinitude ou, talvez, de possibilidade ilimitada (essa é uma ideia para a qual voltaremos mais tarde no capítulo). Se considerarmos a variedade de apresentações possíveis da pedra na experiência perceptual ordinária, podemos discernir uma outra ideia que nos diz algo sobre a natureza dos objetos físicos. Ou seja, existem, podemos dizer, algumas apresentações que são melhores do que outras com respeito ao revelar da pedra em si mesmo. Existem distâncias melhores e piores das quais olhar para a pedra, tipos melhores de luminosidade, e assim por diante. O que torna algumas condições piores é que elas são enganadoras ou inexatas. Sob essas condições, a pedra parece ser somente de um modo ou de outro, embora realmente seja de algum outro modo. Por exemplo, se eu vejo uma pedra cinza esbranquiçada sob uma luz vermelha, ela parecerá mais rosa do que realmente é. O ponto dessas considerações é que, no caso dos objetos físicos, uma distinção entre é e parece está prontamente disponível e é geralmente aplicável.

Husserl argumenta que, quando se trata da consciência, essas características essenciais dos objetos físicos podem não estar presentes (cf. HUSSERL, E. Phenomenology and the Crisis of Philosophy: 103-107). Se mudarmos da pedra que estou percebendo para meu perceber dela, torna-se aparente que não podemos transferir muitas das coisas que notamos sobre a pedra para minha experiência dela. Comecemos com a noção de perspectiva. Embora a pedra se apresente de um lado ou de outro, esse não é o caso com minha percepção dela. A pedra, podemos dizer, aparece em minha experiência dela, mas minha experiência não é apresentada para mim em uma outra aparição. Minha experiência é apenas a apresentação de coisas tais como a pedra, e nada mais. Diferente da pedra, minha experiência não está disponível numa variedade de perspectivas. Não posso “girar” minha experiência do mesmo modo que eu posso girar a pedra, vendo agora de um lado, agora, de outro. Na verdade, minha experiência, diferente da pedra, não tem “lados” em absoluto. Diferente da pedra, que admite infinitas apresentações ou aparições, a aparição é esgotada pelo seu aparecer. Se é assim, então os fenômenos sobre os quais a consciência consiste não admitem a distinção é/parece. Não há para a aparição senão seu aparecer do modo que é; não existe uma maneira pela qual ela possa estar realmente em contraste com o modo pelo qual aparece. Embora a pedra possa parecer pouco nítida, mas de fato ter bordas lisas e distintas, esse não é o caso com minha experiência pouco nítida da pedra (quando recoloco meus óculos, eu tenho uma nova experiência, e não uma nova perspectiva de uma experiência antiga).

O colapso da distinção é/parece, no caso dos fenômenos conscientes, aponta para uma outra desanalogia entre objetos físicos (e, de um modo geral, o mundo natural) e a consciência. Essa outra desanalogia é de natureza “epistemológica”: concerne às diferenças com respeito ao conhecimento e à certeza que estão disponíveis nesses respectivos domínios. Eu disse antes que a pedra era alguma coisa que, como um objeto físico, admitia uma série infinita de apresentações possíveis. Isso significa, dentre outras coisas, que nenhuma experiência apresenta ou apreende a pedra em sua totalidade: há sempre alguma coisa a mais para ver, algum outro modo de vê-la. Para usar a terminologia de Husserl, qualquer experiência perceptual de coisas como a pedra será sempre “inadequada”, o que significa que haverá sempre “lados” que podem ser sugeridos pela experiência, mas que não são parte da experiência no sentido de serem apresentados nessa experiência. Outro modo de colocar isso é dizer que a pedra, e os objetos físicos de um modo geral, transcende minha experiência dela, o que é exatamente como deveria ser. Uma vez que minha experiência da pedra é uma experiência de uma entidade transcendente, que admite a distinção é/parece, então há sempre espaço para erro em minha experiência. É sempre concebível que a experiência futura contrarie minha experiência atual e passada: o que eu considero ser uma pedra pode resultar ser um objeto de cenário em isopor ou, pior, uma ficção de minha imaginação. Para usar mais terminologia husserliana, minha experiência da pedra não é “apodítica”: ela não admite certeza completa.

Mudando da pedra para minha experiência dela, a situação epistemológica muda dramaticamente. Uma vez que minha experiência da pedra não admite a distinção é/parece, ou seja, minha experiência não tem “lados” ocultos do modo como a pedra tem, então se torno a experiência, em lugar da pedra, o “objeto” de minha experiência, eu posso compreendê-la em sua totalidade de um modo tal que eu nunca posso fazê-lo no caso da pedra. Uma experiência cujo “objeto” é um fenômeno, em vez de um objeto físico, é aquela que admite a possibilidade da “adequação”: o fenômeno pode estar completamente presente como o objeto dessa experiência. Diferente da pedra, que é uma entidade transcendente em relação à minha experiência consciente, minha experiência da pedra é imanente à minha experiência consciente e assim, em princípio, não excede minha experiência dela. Além disso, a ausência da distinção é/parece no caso de minha experiência significa que eu posso atingir um nível de certeza ou apoditicidade quando o “objeto” de minha experiência é ele próprio um fenômeno consciente. Mesmo que a pedra somente pareça estar pouco nítida, mas realmente tenha contornos definidos, ou mesmo que não exista realmente, eu posso ainda estar certo de que eu estou tendo neste momento a experiência de uma pedra com contornos pouco nítidos. A existência da pedra está sempre aberta a dúvidas, mesmo que tais dúvidas possam começar a soar um tanto histéricas, mas esse não é o caso com respeito à minha experiência, ou seja, com respeito ao seu conteúdo e qualidades. A fenomenologia, como uma disciplina cujos “objetos” são precisamente fenômenos conscientes, admite um nível de certeza diferente do tipo que é alcançável dentro das ciências naturais.

As ciências naturais procedem pela coleta de dados, propondo hipóteses que explicam os dados, concebendo testes para as hipóteses propostas, e assim por diante. Desse modo, as ciências naturais trabalham indo para além do que é dado na experiência, sempre procurando por leis e princípios que possuam uma relação explanatória com os objetos e processos que são observados. As ciências, portanto, vão tolerar o apelo a objetos, estados e processos que não são observáveis, por exemplo, no domínio da microfísica. Não surpreende, então, que hipóteses científicas sejam sempre propostas como tentativas, abertas à revisão e anuláveis por alternativas. A fenomenologia, em contraste, foca precisamente no que é dado na experiência, abstendo-se inteiramente do método de formular hipóteses e extrair inferências do que é dado para o que se encontra aquém ou além disso. Para Husserl, a fenomenologia deve aderir estritamente ao que ele chama “o princípio de todos os princípios”:

Nenhuma teoria concebível pode nos fazer errar com respeito ao princípio de todos os princípios: que toda intuição nocional originária é uma fonte legítima de cognição, que tudo originalmente (por assim dizer, em sua realidade “pessoal”) oferecido para nós na “intuição” deve ser aceito simplesmente como se apresenta, mas também somente dentro dos limites nos quais se apresenta (Ideas I: § 24).