Husserl – O papel do corpo na percepção de outrem

Erste Philosophie. Erster Teil Kritische Ideengeschichte; Zweiter Teil Theorie der Phänomenologischen Reduktion, Text nach Husserliana VII und VIII (Gesammelte Schriften, 6)

(Erste Philosophie (1923-1924), II, Husserliana, t. VIII, La Haye, M. Uijhoff, 1959, pp. 61-64, trad. A. L. Kelkel e R. Schérer).

Se me pergunto como é que os corpos estranhos como tais, isto é, dos animais e de outros homens enquanto tais, são dados na minha experiência e como o podem ser no quadro universal da minha percepção do mundo, então a resposta é esta: o meu corpo próprio desempenha neste quadro, portanto do ponto de vista do conhecimento empírico originário, o papel do corpo primordial do qual deriva a experiência de todos os outros corpos; e assim eu não deixo de ser para mim e para a minha experiência o homem primordial do qual a experiência de todos os outros homens deriva o seu sentido e a sua possibilidade perceptiva. Com efeito, é só porque, no meu campo perceptivo, o meu corpo próprio, enquanto corpo próprio orgânico, está sempre já aí, dado no modo originário da percepção psicofísica, logo com a sua dupla camada, que outros corpos, enquanto corpos orgânicos, podem existir para mim e, de certa maneira, valer também como percepcionados. Só na medida em que as coisas do meu ambiente corporal se assemelham ao meu corpo próprio e àquilo que nele confere ao seu comportamento físico o nível de uma expressão animada de sentido que elas poderão e, por conseguinte, deverão ser também captadas pela experiência a título de corpos animados. Mas isto não são afirmações feitas em virtude de algumas teorias psicológicas objetivas das quais não tenho o direito de me servir aqui; descobri-o no exame da minha própria percepção e da sua estrutura específica de percepção de corpos orgânicos próprios e estranhos. A percepção de um corpo orgânico estranho é percepção desde que eu capte precisamente a existência desse corpo como estando imediatamente aí «em pessoa». E do mesmo modo o outro homem enquanto homem está aí para mim na percepção. Exprimo, com efeito, a sua presença perceptiva imediata, acentuando-a ao máximo, justamente ao dizer: é um homem em carne e osso que está aqui perante mim. Não é uma dedução, algo de mediato que conduz à posição da corporeidade estranha e do meu semelhante; o que significaria justamente que ele não está «aí» senão num sentido mais lato, que é possível descobri-lo algures no meu universo ambiente, que pode ser-me dado pela experiência. Pelo contrário, ele é realmente dado na minha experiência e está presente além no seu lugar no espaço, de maneira perfeitamente imediata; é impensável que eu possa ter dele uma experiência ainda mais imediata. E é assim que afirmo com toda a razão: percepciono-o em carne e osso.

E não obstante o sentido desta percepção implica de fato uma certa mediatez que a distingue por essência da percepção do meu corpo próprio. No caso deste último, já o vimos, o corpo orgânico, enquanto ser físico, é percepcionado de maneira originária, mas também o ser psíquico que nele se incarna, e tal como se incarna. Não é este psiquismo o meu próprio psiquismo? Em contrapartida, o corpo psicofísico estranho é, sem dúvida, percepcionado no meu ambiente espacial e de modo tão originário como o meu; mas não se passa o mesmo com o psíquico nele incarnado. Não é realmente e propriamente ele mesmo dado, mas simplesmente visado conjuntamente com ele por apresentação. Há a este respeito uma semelhança com aquele tipo de antecipação em virtude da qual, em toda a percepção externa, algo está incluído do co-percepcionado visado como sendo ele mesmo co-presente; assim, por exemplo, o reverso invisível de uma coisa percepcionada. Mas a analogia não é completa; é uma indicação, mas não uma antecipação que pudesse tornar-se apreensão da coisa mesma. Esta intenção indicativa não exige nem torna possível uma percepção que viesse coroá-la, como acontece no caso de todos os momentos de antecipação no seio da percepção de coisas espaciais. A percepção de um corpo orgânico estranho, segundo a sua essência, é antes, deveríamos dizer, uma percepção por interpretação originária. Esta originaridade é fundada na sua indissociável referência essencial à minha própria corporeidade originária na qual tenho a experiência vivida originária de uma incarnação do subjetivo num ser que aparece como coisa. Quando percepciono aquela coisa além, que, por todo o seu comportamento, se assemelha ao meu próprio corpo, não posso impedir-me de apreendê-la como uma coisa na qual se encarna algo do subjetivo, sobre o modo indicado e determinado, consoante o caso, por um movimento da mão, por um movimento da cabeça, por uma sensação táctil tal como são característicos de um eu. Captando essa coisa, primeiramente no que nela imediatamente se incarna, capto-a espontaneamente e ao mesmo tempo como um corpo vivo ao qual pertence uma subjetividade concretamente completa, que permanece mais ou menos indeterminada, uma subjetividade que deve ter a experiência vivida dela mesma no «eu sou», mas que eu mesmo não sou. Compreender como expressão este ato de ver uma coisa espacial que se associa na captação de uma corporeidade estranha a uma percepção por interpretação originária é, relativamente à simples percepção externa ou mesmo já fundada do corpo próprio, uma forma fundamental específica da experiência.