Husserl – Intersubjetividade e mundo da experiência pura

(Lógica Formal e Lógica Transcendental, trad. S. Bachelard, Presses Universitaires de France, pp. 322-323).

Partamos do fato que para nós, ou para falar mais claramente, para mim enquanto ego, o mundo é constituído como mundo «objetivo», no sentido de mundo que existe para todo o ser, que se revela, tal como é, na comunidade intersubjetiva do conhecimento. Deve, portanto, já estar constituído um sentido de «todo o ser» para que, em relação com esse sentido, possa haver um mundo objetivo. Isto implica que deve haver à base um primeiro sentido de «todo o ser», logo também um primeiro sentido de outrem, que não é ainda o sentido habitual, de nível mais elevado, a saber o sentido: «todo o homem», sentido que visa um real no mundo objetivo, que pressupõe, portanto, já a constituição do mundo.

O «outro» do grau constitutivo inferior remete, então, em conformidade com o seu sentido, para mim mesmo; mas para mim não enquanto ego transcendental, mas enquanto eu psicofísico meu. Mesmo este ainda não pode ser eu, homem no mundo objetivo, no mundo cuja objetividade não deve ser possível para ele senão de uma maneira constitutiva.

Isto remete, por sua vez, para o fato que da minha corporeidade material que, pelo seu sentido, é espacial e um membro de um ambiente que compreende corpos extensos no espaço, que é membro de uma natureza — no interior da qual o corpo de outrem se opõe a mim — somos reenviados para o fato de tudo isto não poder ainda ter a significação do que pertence ao mundo objetivo. O meu eu psicofísico primeiro em si (não é caso aqui de gênese temporal, mas de camadas constitutivas), em relação com o qual outrem, primeiro em si, deve ser constituído, é, como vemos, membro de uma natureza primeira em si que não é ainda natureza objetiva, cuja espácio-temporalidade não é ainda espácio-temporalidade objetiva, por outras palavras, que não tem ainda os traços constitutivos que provêm de outrem já constituído. Em ligação com esta primeira natureza aparece o meu eu psíquico como aquele que governa neste elemento material que pertence a esta natureza e que se chama o meu corpo material na medida em que exerce neste corpo, de uma maneira única, funções psicofísicas, «animando», em conformidade com a experiência original, este corpo que é corpo único.

Compreende-se então que esta primeira natureza (ou mundo), esta primeira objetividade que ainda não é intersubjetividade, seja constituída no meu ego como algo que me pertence propriamente, no sentido forte, na medida em que ela ainda não contém em si algo de estranho ao eu, isto é, na medida em que ela não contém nada que ultrapasse, pela inclusão constitutiva de eus estranhos, a esfera da experiência verdadeiramente direta, da experiência verdadeiramente original (ou do que provém dela). Por outro lado, é claro que é nesta esfera do que propriamente pertence, de maneira primordial, ao meu ego transcendental que deve residir o fundamento da motivação para a constituição dessas transcendências autênticas que ultrapassam o que assim pertence propriamente ao ego, que surgem como «outras» (enquanto seres psicofísicos outros e ego transcendentais outros) e, por este meio, tornam possível a constituição de um mundo objetivo no sentido corrente: um mundo de «não-eu», do que é estranho ao eu. Toda a objetividade tomada neste sentido é reconduzida de uma maneira constitutiva ao primeiro elemento estranho ao eu, sob a forma de «outrem», isto é, do não-Eu sob a forma «eu de outrem».