Husserl – O ser absoluto da consciência

(Ideias Diretrizes para uma Fenomenologia, trad. P. Ricoeur, ed. Gallimard, 1950, pp. 160-164).

A existência de um mundo é o correlato de um certo diverso da experiência que se distingue por certas configurações eidéticas. Mas nenhuma evidência exige que as experiências atuais só possam desenrolar-se se apresentarem tais formas de encadeamento; se se consulta puramente a essência da percepção em geral e a das outras espécies de intuições empíricas que cooperam na percepção, nada de semelhante pode daí concluir-se. Pelo contrário, é perfeitamente pensável que a experiência se dissipa em simulacros por força de conflitos internos, e não somente no pormenor; que cada simulacro, diferentemente da nossa experiência de fato, não anuncia uma verdade mais profunda; que cada conflito considerado no seu lugar não seja, justamente, aquele que exija um novo alargamento da rede encadeada das experiências a fim de salvaguardar a concordância do conjunto; é pensável que a experiência abunde em conflitos irredutíveis, e irredutíveis não somente para nós mas em si; que a experiência se revolte, subitamente, contra toda a pretensão de manter constantemente a concordância entre as posições de coisas; que do seu encadeado desapareça toda a ordem coerente entre os esquemas, as apreensões, as aparências; em suma, que não haja mundo. Nesse caso seria possível que, numa certa medida, viessem, no entanto, a constituir-se formações que oferecessem uma unidade rudimentar: seriam pontos de paragem provisórios para as intuições, que não teriam assim senão uma simples analogia com as intuições de coisas, pois seriam totalmente inaptas para constituir «realidades» permanentes, unidades duráveis, que «existam em si, sejam ou não percepcionadas».

Se fizermos intervir agora as conclusões obtidas no fim do último capítulo e evocarmos a possibilidade do não-ser incluída na essência de toda a transcendência da coisa, torna-se claro que o ser da consciência, e todo o fluxo do vivido em geral, seria, decerto, necessariamente modificado se o mundo das coisas viesse a aniquilar-se, mas que não seria atingido na sua própria existência. Seria, certamente, modificado: com efeito, que significa, do ponto de vista correlativo da consciência, o aniquilamento do mundo? Unicamente isto: em cada fluxo do vivido (o fluxo dos vividos de um eu tomado na sua totalidade, infinito nos dois sentidos) encontrar-se-iam excluídas certas conexões empíricas ordenadas; esta exclusão arrastaria igualmente a de certas outras conexões instituídas pela sistematização teórica da razão e reguladas pelas primeiras. Em contrapartida, esta exclusão não implicaria a de outros vividos e outras conexões entre os vividos. Por conseguinte nenhum ser real, nenhum ser que se apresente e legitime, para a consciência, através de aparências, é necessário para o ser da própria consciência (entendida no seu sentido mais vasto de fluxo do vivido).

O ser imanente é portanto indubitavelmente um ser absoluto, neste sentido que por princípio nulla «re» indiget ad existendum.

Por outro lado o mundo das «res» transcendentes refere-se inteiramente a uma consciência, não a uma consciência concebida logicamente mas a uma consciência atual.

Estes princípios ressaltam já claramente, quanto ao essencial, das análises anteriores. O que é transcendente é dado por meio de certos encadeamentos no seio da experiência. Uma vez dado diretamente e segundo uma perfeição crescente no seio de um fluxo contínuo de percepções que se revelam concordantes, o ser transcendente sujeita-se a certas formas metódicas do pensamento baseado sobre a experiência e acede, através de um número maior ou menor de mediações, a uma determinação teórica susceptível de evidência e de progresso incessante. Suponhamos que a consciência considerada no seu estatuto de vivido e no seu desenrolar seja, na realidade, feita de tal modo que o sujeito de consciência, quando empreende as tentativas teóricas necessárias à experiência e ao pensamento empírico, seja capaz de operar todas essas conexões (ser-nos-ia, então, necessário fazer intervir a compreensão mútua com outros eus e outros fluxos do vivido); suponhamos, além disso, que sejam efetivamente realizadas todas as regulações correspondentes da consciência; suponhamos, portanto, que, do lado da consciência e do seu desenrolar, não falta absolutamente nada do que seria requerido para que apareça um mundo dotado de unidade e para que esse mundo se preste a um conhecimento teórico de ordem racional. Perguntamos, então, se, nesta hipótese, seria ainda pensável e se não seria, pelo contrário, absurdo, que o mundo transcendente correspondente não fosse?

Vemos, portanto, que a consciência (o vivido) e o ser real não são, de modo algum, espécies de ser coordenadas, que coabitam pacificamente e entram ocasionalmente em «relação» ou em «ligação». A tomar as palavras no seu verdadeiro sentido, apenas se ligam e formam um todo as coisas que são aparentadas pela sua essência, que têm, uma e outra, uma essência própria num sentido idêntico. Podemos, sem dúvida, aplicar ao ser imanente ou absoluto e ao ser transcendente os termos «ente», «objeto»: têm, de fato, um e outro, o seu estatuto de determinação; mas é evidente que o que, então, chamamos, de um lado e doutro, objeto e determinação objetiva não tem o mesmo nome senão por referência a categorias lógicas vazias. Entre a consciência e a realidade cava-se um verdadeiro abismo de sentido. Temos, de um lado, um ser que se esboça, que não pode nunca ser dado absolutamente, um ser puramente contingente e relativo, do outro um ser necessário e absoluto, que, por princípio, não se dá em esboço e aparência.

Donde, mesmo se o sentido das palavras permite, certamente, falar do ser real do eu humano e do seu vivido de consciência no mundo, e falar dos diversos aspectos deste ser real do ponto de vista das conexões «psicológicas», apesar de tudo isto, torna-se doravante claro que a consciência considerada na sua «pureza» deve ser considerada como um sistema de ser fechado sobre si, como um sistema de ser absoluto no qual nada pode entrar e do qual nada pode sair, que não tem um exterior de ordem espacial ou temporal, que não pode instalar-se em nenhum sistema espácio-temporal, que não pode sofrer a causalidade de nenhuma coisa, nem exercer causalidade sobre nenhuma coisa — se supusermos que a causalidade tem o sentido normal de causalidade natural que institui uma relação de dependência entre realidades.

Por outro lado, o conjunto do mundo espácio-temporal no qual o homem e o eu humano vêm inserir-se a título de realidades individuais subordinadas tem em virtude do seu sentido um ser puramente intencional; tem, por conseguinte, o sentido puramente secundário, relativo, de um ser para uma consciência. É um ser que a consciência põe nas suas próprias experiências e que por princípio não é acessível à intuição e não é determinável senão como aquilo que permanece idêntico no diverso motivado das aparências — um ser que, para lá desta identidade, é um Nada.