Mas onde, então, estará a diferença? Aparentemente chegamos ao mesmo ponto. Somos levados a dizer que a mesma perspectiva será encontrada na filosofia e na ciência: a perspectiva de um autêntico saber que deve ser ao mesmo tempo um saber da totalidade e um saber da singularidade.

Como será possível, então, explicar a dualidade que sem dúvida existe? Não é absolutamente o mesmo discurso que encontramos nas obras dos filósofos e nas obras dos cientistas, nem os mesmos métodos, nem os mesmos conceitos. Como poderemos exprimir essa dualidade e manter ao mesmo tempo o que dissemos sobre o caráter comum da ciência e da filosofia?

Poderíamos, talvez, avançar a seguinte explicação. A filosofia, como vimos, visa a totalidade-singularidade pela via, indireta do fundamento. E o fundamento é sempre, em todas as concepções, um fundar, um ato de fundação, uma posição, uma gênese. No fundamento nós realmente vemos a totalidade-singularidade sendo constituída em seu todo e em seus detalhes, somos testemunhas do movimento de sua gênese, de seu surgimento, de seu crescimento, do evento de seu advento. Aqui, realmente, nos encontramos na origem do mundo, neste momento do começo em que o cosmos se separa da sphairos, em que um mundo organizado emerge do caos primitivo, em que o sentido resulta do não-sentido, da mera ausência de sentido, em que a verdade aparece e se constitui como verdade. Eis por que a filosofia é a explicação e justificação ultimas da ciência: ela descreve a gênese da ciência como uma parte da gênese total do sentido e da verdade.

A ciência, por seu lado, toma a totalidade como algo que está dado. é isso que Husserl chama de ingenuidade científica, mas é uma ingenuidade de segunda ordem, porquanto já é uma reflexão sobre a experiência imediata, onde se encontra a raiz da verdadeira ingenuidade. E, então, ela tenta apreender essa totalidade como uma totalidade. Para fazê-lo, ela não tenta simplesmente descrevê-la ponto por ponto. Ela tenta apreender os princípios de acordo com os quais essa totalidade se mantém de pé e é constituída, ela tenta compreender seus princípios de organização. E para chegar a isso, procura refazer a totalidade, reefetuá-la.

Portanto, também a ciência é realmente uma cosmogonia, mas no sentido de uma recriação. Ela é uma reexecução, um reacabamento do mundo, uma reefetuação do funcionamento do mundo. E é aqui que encontramos o significado do “operar”. Vimos que a ciência é o domínio do “operar”. Mas o que isso realmente significa? Significa que a ciência refaz, em suas próprias operações, as operações do mundo. Ela reefetua em seus próprios procedimentos não apenas a operação empírica que tem lugar no mundo, mas mais profundamente, as operações constitutivas que agem no interior do mundo, e que estão presentes nele para torná-lo um mundo e dele fazer este mundo que realmente existe. A ciência é, em consonância com isso, uma reduplicaçâo da filosofia, visto que repete, da maneira própria a ela, a gênese que a filosofia descreve. Mas ela tem sua natureza específica, porque repete essa gênese descrevendo sua efetuação, sua realização. Ao passo que a filosofia a descreve nela mesma, em seu surgimento, em seu jorrar, em sua origem enquanto origem.

Com isso em mente, talvez possamos entender mais exatamente o caráter da ciência e o da filosofia, sua relação, o que têm em comum e o que as torna opostas uma à outra. A ciência e a filosofia são carregadas pela mesma inspiração fundamental, que nada mais é que a ideia diretriz do Logos, da razão, do conhecimento racional. Ela é a perspectiva de um saber autêntico, e esse saber autêntico, como vimos, deve ser ao mesmo tempo um saber da totalidade e um saber da singularidade. Há assim uma inspiração comum — poderíamos chamar-lhe com Husserl uma intencionalidade fundamental — que é idêntica, é a razão enquanto teleologia. Isso explica a unidade da ciência e da filosofia, uma unidade que, apesar das diferenças, é real.

Há uma diversificação externa nessa intencionalidade, de tal modo que vemos surgir uma divergência entre duas diferentes modalidades desse saber, desse projeto geral da razão. Há duas maneiras de visar a totalidade-singularidade: seja pela via indireta da fundamentação, seja pela via indireta do “operar”. No primeiro caso — o da filosofia — descrevemos a gênese do mundo, desvelamos a operação-fonte da experiência e do mundo. No segundo caso — o da ciência — reefetuamos o mundo através de uma espécie de reduplicação que é tornada factível por intermédio de sua operação. Descrevemos, reexecutando-as, as formas a priori da estrutura da realidade. A filosofia é uma arqueologia absoluta e a ciência uma morfologia absoluta.

Isso explica sua relação mútua. Do mesmo modo que é a ciência do fundamento último, a filosofia também é, em particular, a ciência da fundamentação da ciência (ao mesmo tempo em que também é, claro, a ciência de sua própria fundamentação). E é isso que constitui a verdade do tipo cartesiano-husserliano de interpretação. Por outro lado, a ciência é, de sua parte, fundamentalmente limitada, porque pressupõe um mundo que já está constituído. Ela se instaura uma experiência que já está dada.

Em contrapartida, por assim dizer, devemos concordar que a filosofia é singularmente limitada. Limita-a sua própria ambição. Sua grandeza é ao mesmo tempo sua fraqueza. Sendo uma ciência do fundamento, ela é apenas uma ciência do fundamento. Ela se dá o privilégio de contemplar a gênese do mundo, mas tem que pagar por esse privilégio com sua incapacidade de conhecer o mundo em seu conteúdo concreto. Ela se aplica à constituição enquanto tal, à origem enquanto tal, não aos resultados da constituição, àquilo que vem depois da origem. Eis aí a verdade sobre a filosofia transcendental. A ciência, ao contrário, recebe a recompensa de sua humildade. Ela não se coloca na origem das coisas, mas deste modo é capaz de compreender sua estrutura interna, de penetrar em sua intimidade. Ela conhece o mundo em seu efetuar-se, ela conhece o resultado da gênese, o fim da história. E é isso que explica a eficacidade da ciência e sua fecundidade.

Possuímos, assim, por um lado, um conhecimento de profundidade, mas estéril de conteúdo, por outro lado, um conhecimento do conteúdo, mas esquecido da profundidade. Não podemos abranger tudo num só relance. A ciência e a filosofia não estão opostas como dois termos de uma antinomia. Não devemos falar em oposição, mas em complementaridade. O projeto geral da razão não pode ser levado a cabo a não ser por meio de uma auto-diversificação. E a dualidade ciência-filosofia representa o preço que temos que pagar para podermos realizar um pouco melhor as ideias do logos.

O progresso não está do lado da síntese, que é pura confusão, mas do lado da análise, da separação, da diversificação. A ciência e a filosofia, longe de se oporem uma à outra, simbolizam-se mutuamente. Cada qual leva a cabo, à sua própria maneira, o que a outra realiza em seu próprio campo e em seu nível apropriado. Essa mútua simbolização — vestígio e índice da unidade dentro, e apesar, da dualidade — mostra ao mesmo tempo aquilo que em nós é a esperança da unidade e aquilo que nos impede de atingir uma unidade total e plenamente acabada. Ela expressa, na forma concreta da vida do logos humano, nossa finitude essencial. E poderíamos acrescentar que, deste modo, a ciência e a filosofia, partes integrais que são do discurso da razão e do saber racional, simbolizam tão-somente um outro saber, que não será mais chamado de logos, mas de sabedoria.

Jean Ladrière