La Pérouse não viaja pelo prazer de viajar, pelo lucro, pelas rapinas, mas com a finalidade, explicitada por Luís XVI, de melhorar os mapas do Pacífico. A justificativa de suas vigílias e de suas guardas não é apenas haver visitado esta ou aquela ilha, mas, de noite, tê-las registrado, apontando no mapa cujo rascunho ele tem. Sua jornada não acaba, sua missão não se conclui enquanto ele não faz o ponto e o inscreve numa superfície de papel de alguns pés quadrados. […]
Esta viagem é uma das primeiras cuja finalidade é fazer um mapa. O diário de bordo mostra-nos esta estranha paixão; nada importa, daquilo que eles experimentam, se não estiver representado num mapa, seguindo uma exata projeção em longitude e em latitude, e se este mapa não for passível de voltar para a França a fim de ali ser multiplicado por impressão. La Pérouse, é inútil dizer, não posa de homem desinteressado.
Ele sonha apenas em desviar às rotas comerciais dos espanhóis e portugueses e só tem desprezo pelos pilotos que mantêm secretos seus rutters. Ele quer tornar públicos os mapas e possibilitar ao rei da França e ao comércio estender-se mais longe, mais rápido e ganhar mais. […]
La Pérouse diz sem o menor problema que quer possibilitar o retorno das frotas mercantes e poupar-lhes tempo e riscos inúteis. Ao atracar no que ele chama de ilha Ségalien e querendo verificar se se trata de uma ilha, a tripulação do Astrolábio e do Bússola encontra nativos. Como sempre, os marinheiros, para se pouparem de longas voltas, querem arrancar aos nativos sua geografia, sua etnografia. La Pérouse, desta vez, espanta-se de que essas espécies de chineses saibam a forma de sua ilha e do grande rio. Seu espanto é estranho. Pessoas que vivem há milênios nessas águas devem saber a forma das ilhas, cabos e correntes. Tudo, porém, está na forma dessa forma.
“Conseguimos fazê-los entender que desejaríamos que eles representassem seus país e o dos manchus. Então, um dos velhos se levantou, e com uma ponta do seu cachimbo, traçou a costa da Tartária no Oeste, correndo mais ou menos Norte e Sul. A Leste defronte e na mesma direção, ele representou sua ilha; e, levando a mão ao peito, fez-nos entender que acabara de traçar seu próprio país; ele deixara entre a Tartária e sua ilha um estreito, e voltando-se para nossos navios, que se enxergava da margem, marcou com um traço que podíamos passar por ali. f…]Sua sagacidade para adivinhar nossas perguntas era enorme, mas menor ainda que a de um outro ilhéu, com cerca de 30 anos de idade que, vendo que as figuras traçadas na areia apagavam-se, pegou um dos meus lápis, e papel; traçou aí sua ilha, a que chamou Chola, e indicou por um traço o pequeno riacho em cuja margem estávamos…” (p. 88)
O chinês descreve a forma — mas onde? Na areia. E inscreve-a por alguns minutos, apenas para dar a entender, para explicar, para servir de intermediário à comunicação de conhecimentos que estão no seu corpo desde a infância. Mas a areia apaga-se. Outro chinês consente prazerosamente em desenhar no papel do geógrafo.
La Pérouse não nasceu e nem pensa em ficar aqui. Só está de passagem. Seu saber não pode ser incorporado e não pode, portanto, sustentar-se na areia que se apaga e que a maré pode cobrir. Ele o registra, portanto, e este é o único meio que ele temè lembrar-se de todos esses lugares que percorre em nome do rei.
A natureza do registro não é indiferente. La Pérouse […] não só quer voltar um dia, mas também que qualquer um possa voltar, por qualquer rota, e reconhecer, entretanto, a ilha, sua forma, seus pontos de abordagem e seus recifes. É preciso que qualquer navio possa orientar-se sem nunca ter vindo aí antes. Eis porque ele registra o saber dos selvagens, transfere para seu mapa e transforma-o conforme a projeção de Mercator. […]
Para o selvagem, os conhecimentos que possui são suficientes pois está sempre naqueles locais. Porém, para La Pérouse, só conta o que está registrado pois amanhã ele não estará mais nesses locais. O intermediário — o mapa na areia — é desinteressante para o selvagem que se diverte diante de tanta ignorância; ele é tudo para a tripulação do Astrolábio. [,..]
A narrativa não assume a mesma forma e não se compõe dos mesmos registros se for preciso que haja, em Paris, simulacros da ilha Sacalina fiéis o suficiente para que possam, de Paris, dividir o mundo, entre eles, abrir rotas comerciais, deslocar tropas e inventariar a fauna.
O retorno de outros navios aos mesmos mares impõe a La Pérouse obrigações que nenhum outro navegador conheceu. A fidelidade da geografia é um resultado tardio das redes que se deseja estabelecer.
O mesmo ocorre com a projeção de Mercator. Sua forma depende da natureza do enunciado. Graças a ela, como disse anteriormente, qualquer um pode pré-conhecer os acessos à ilha. Mas esta projeção é inútil para quem quer voltar sozinho e pela mesma rota. É o caso dos pilotos portugueses cujos “rutters” secretos, ilegíveis, escondidos a todos os olhos, impunham sinalizações próprias a cada itinerário que era preciso indicar exatamente. Sem o duplo contexto do piloto e da rota única e repetida, o rutter é mudo. […]
La Pérouse, autorizado pelo rei e por uma nação que esta apropriação exaspera, quer um “universal”. […]
Como pode operar-se esta transformação? Os mapas que relatam a informação conforme a projeção do Mercator, uma vez desenhados e multiplicados, permitem que se faça cálculos sobre o próprio mapa. Este ponto é essencial. Os registros dos rutters são heterogêneos, só fazem sentido para quem os decifra e esteve nos mesmos lugares. O intermediário, por si só, é sem valor, ilegível e até mesmo “falso”. É no máximo um memorando. Mas os pontos de La Pérouse reunidos no mapa são tomados homogêneos pela projeção. Eles são tão homogêneos que uma única superfície liga todos, superfície esta sobre a qual é possível trabalhar. O intermediário tem por si só, tanto valor que é possível aprender coisas novas apenas trabalhando sobre ele. O compasso e a régua medem distâncias e fica possível, em Versalhes, ter raciocínios desta ordem:
chegando por tantos graus de latitude Norte e tanto de latitude Leste pela ponta sul da ilha Sacalina, eu teria a foz do Grande Rio por esse ou aquele grau. Este raciocínio é crível em Versalhes mesmo para quem nunca esteve no Pacífico. […]
O diário de bordo de La Pérouse mostra-nos a transformação que nos interessa. O intermediário desinteressante, local, secreto, provisório, supérfluo, de todas as relações entre nativos, torna-se o único objeto permanente de todos estes deslocamentos de quem apenas passou e quer que outros — qualquer um — possam voltar. […]
As geografias míticas ou simbólicas dos primitivos só são assim pelo movimento de quem fala. O que ele diz ao longe sobre um lugar a pessoas que nunca estiveram lá, mas que esperam agir sobre esse lugar, acha-se necessariamente transformado. A informação é perfilada para esta viagem de longo curso ao longo de uma rede que possibilita a um outro (constituído, aliás, por esta viagem) agir à distância. Tudo, absolutamente tudo, fica falso, mítico, extravagante, exagerado, simplista, se a finalidade é construir redes tais que em Gênova, Londres, Veneza ou Nova York seja possível influenciar todos os outros pontos do mundo. A diferença entre a geografia dos nativos e a de La Pérouse não é a que vai do falso ao verdadeiro, mas a de uma piroga a um navio de longo curso, ou a de uma estradinha vicinal a uma rodovia. Nada é, por si, falso ou ilógico, mas não são as mesmas pessoas que caminham numa trilha de contrabandista ou que rodam numa auto-estrada.