Edgar Morin – Epistemologia da tecnologia

Excertos de «Ciência com Consciência», tradução Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória. Ensaio original: “Epistemologia da tecnologia”, apresentado no colóquio internacional “Tecnologia e cultura pós-industrial”, organizado pelo Centro de estudos do século XX e pela Universidade de Nice, Nice, 12 de maio de 1978, publicado em Media analyses, Cahiers des recherches communicationnelles, I,1981.

Se tento refletir sobre esse título, começo a perguntar-me se, de fato, não estamos num universo em que a epistemologia já está tecnologizada sem saber, considerando este objeto abstrato: a tecnologia. Primeira observação: creio que, do ponto de vista epistemológico, é impossível isolar a noção de tecnologia ou techne, porque bem sabemos que existe uma relação que vai da ciência à técnica, da técnica à indústria, da indústria à sociedade, da sociedade à ciência etc. E a técnica aparece como um momento nesse circuito em que a ciência produz a técnica, que produz a indústria, que produz a sociedade industrial; circuito em que há, efetivamente, um retorno, e cada termo retroage sobre o precedente, isto é, a indústria retroage sobre a técnica e a orienta, e a técnica, sobre a ciência, orientando-a também. Portanto, direi que o primeiro problema, ao longo do nosso discurso, é evitar isolar o termo techne, ou seja, reificá-lo e, diria eu, idolatrá-lo: idolatrar a técnica não é só fazê-la objeto de culto, mas também considerá-la ídolo a derrubar, à maneira de Moisés ou, ainda, de Polieuto. Então, penso que é no não isolamento do termo “técnica” que começa esse difícil debate. Em contrapartida, conceber em termos disjuntores e simplificadores a técnica, que se torna uma espécie de entidade que se racha, é, eu diria, o debate do mal-entendido.

Se não queremos isolar a tecnologia, devemos unir o termo em macroconceito que reagrupe em constelação outros conceitos interdependentes. Já não se podem separar o conceito, a tecnologia, do conceito ciência, do conceito indústria; trata-se de conceito circular, porque, no fundo, todos sabem que um dos maiores problemas da civilização ocidental está no fato de a sociedade evoluir e se transformar exatamente no circuito ciência -> tecnologia -> indústria em que, aliás, tenho a impressão de que o termo “técnica”, techne, polariza alguma coisa; e o que se polariza em primeiro lugar é a ideia de manipulação.

De onde vem essa manipulação? A ciência ocidental desenvolveu-se como ciência experimental e, para suas experiências, teve de desenvolver poderes de manipulação precisos e seguros, ou seja, técnicas de verificação. Em outras palavras, a ciência começou como um processo em que se manipula para verificar, ou seja, para encontrar o conhecimento verdadeiro, objeto ideal da ciência Mas a introdução do circuito manipular -> verificar no universo social provoca, ao contrário, inversão de finalidade, isto é, cada vez mais verifica-se para manipular. Em seu universo fechado, o cientista está convencido de que manipula (experimenta) para a verdade, e manipula não só objetos, energias, elétrons, não só unicelulares, bactérias, mas também ratos, cães, macacos, convencido de que atormenta e tortura pelo ideal absolutamente puro do conhecimento. Na realidade, ele alimenta também o circuito sócio-histórico, em que a experimentação serve à manipulação. A manipulação dos objetos naturais foi concebida como emancipação humana pela ideologia humanista-racionalista. Até época recente, o domínio da natureza identificava-se como o desabrochar do humano. Verificou-se, entretanto, uma tomada de consciência nos últimos decênios: o desenvolvimento da técnica não provoca somente processos de emancipação, mas também novos processos de manipulação do homem pelo homem ou dos indivíduos humanos pelas entidades sociais. Digo “novos” porque se tinham inventado, desde a pré-história, processos muito requintados de sujeição ou subjugação, sobretudo com relação aos animais domesticados. A sujeição significa que o sujeito sujeitado sempre julga que trabalha para seus próprios fins, desconhecendo que, na realidade, trabalha para os fins daquele que o sujeita. Assim, efetivamente, o carneiro-chefe do rebanho julga que continua a comandar seu rebanho, quando, na realidade, obedece ao pastor e, finalmente, à lógica do matadouro.

Com a tecnologia, inventamos modos de manipulação novos e muito sutis, pelos quais a manipulação exercida sobre as coisas implica a subjugação dos homens pelas técnicas de manipulação. Assim, fazem-se máquinas a serviço do homem e põem-se homens a serviço das máquinas. E, finalmente, vê-se muito bem como o homem é manipulado pela máquina e para ela, que manipula as coisas a fim de libertá-lo.