O assunto é difícil e eu vacilei não pouco antes de decidir-me por um ou outro princípio seguindo ao qual pudéssemos distinguir esses estádios. Evidentemente é preciso rejeitar o que fora mais óbvio: segmentar a evolução fundando-se no aparecimento de tal ou qual invento que se considera muito importante e característico. Tudo o que venho dizendo neste ensaio conspira à correção do erro tópico que acredita que o importante na técnica é este ou aquele invento. Qual é o de maior calibre que se possa citar em comparação com a mole enorme da técnica toda numa época? O que esta seja em seu modo geral é o verdadeiramente importante, o que pode significar uma mudança ou avanço substantivos. Não existe nenhum invento que seja, em última instância, medido com as dimensões gigantes da evolução integral. Ademais já vimos como técnicas magníficas se perdem depois de obtidas ou desaparecem definitivamente — entende-se, até agora — ou tiveram que ser redescobertas. De resto, não basta que se invente alguma coisa em certa data e lugar para que o invento represente sua verdadeira significação técnica. A pólvora e a imprensa, dois dos descobrimentos que parecem mais importantes, existiam na China séculos antes sem que servissem para nada apreciável. Somente no século XV e na Europa, provavelmente na Lombardia, se faz da pólvora uma potência histórica, e na Alemanha, pela mesma época, a imprensa. Em vista disso, quando diremos que se inventaram ambas as técnicas? Evidentemente, somente integradas no corpo geral da técnica fim-medieval e inspiradas pelo programa vital do tempo transpõem o limiar da eficiência histórica. A pólvora como arma de fogo e a imprensa são autenticamente contemporâneas da bússola e do compasso: os quatro, como logo se percebe, de um mesmo estilo, bem característico desta hora entre gótica e renascentista que culminará em Copérnico. Notem os senhores que esses quatro inventos obtêm a união do homem com o distante — são a técnica da actio in distants, que é o subsolo da técnica atual. O canhão põe em contato imediato aos inimigos longínquos; a bússola e o compasso, ao homem com o astro e os pontos cardeais; a imprensa ao indivíduo solitário, ensimesmado, com essa periferia infinita — em espaço e tempo — infinita no sentido de não finito — que é a humanidade de possíveis leitores.
A meu entender, um princípio fundamental para periodizar a evolução da técnica é atender a própria relação entre o homem e sua técnica ou, em outras palavras, à ideia que o homem foi tendo de sua técnica, não desta ou doutra determinadas, mas da função técnica em geral. Veremos como este princípio não somente esclarece o passado, senão que de um golpe ilumina as duas questões enunciadas por mim: a mudança substantiva que engendrou nossa técnica atual e por que ocupa esta na vida humana um papel ímpar ao representado em nenhum outro tempo.
Partindo deste princípio podemos distinguir três enormes estádios na evolução da técnica:
1.° A técnica do acaso. 2.° A técnica do artesão. 3.° A técnica do técnico.
A técnica que chamo do acaso, porque o acaso é nela o técnico, o que proporciona o invento, é a técnica primitiva do homem pré e proto-histórico e do atual selvagem — entende-se, dos grupos menos avançados — como os Vedas do Ceilão, os Semang de Borneo, os pigmeus de Nova Guiné e do centro africano, os australianos, etc.
Como se apresenta a técnica à mente deste homem primitivo? A resposta pode ser aqui sobremaneira taxativa: o homem primitivo ignora sua própria técnica como tal técnica; não se apercebe que entre suas capacidades existe uma especialíssima que lhe permite reformar a natureza no sentido de seus desejos.
Com efeito:
1.° O repertório de atos técnicos que usa e desfruta o primitivo é sumamente escasso e não chega a formar um corpo suficientemente volumoso para que possa destacar e diferenciar-se do repertório de atos naturais que é em sua vida incomparavelmente maior que aquele. Isto equivale a dizer que o primitivo é minimamente homem e quase todo ele puro animal. Os atos técnicos, pois, se dispersam e submergem no conjunto de seus atos naturais e se apresentam à sua mente como pertencendo à sua vida não técnica. O primitivo acha que pode fazer fogo da mesma forma que acha que pode andar, nadar, esmurrar, etc. E como os atos naturais são um repertório fixo e dado de uma vez para sempre, assim também seus atos técnicos. Desconhece por completo o caráter essencial da técnica, que consiste em ser ela uma capacidade de mudança e progresso, em princípio, ilimitados.
2.° A singeleza e escassez dessa técnica primígena trazem consigo que sejam exercidos seus atos por todos os membros da coletividade. Todos fazem fogo, elaboram arcos e flechas, etc. Isto é, que a técnica não parece destacada nem sequer pelo fato que constituirá a segunda etapa na evolução, ou seja, que somente certos homens — os artesãos — sabem fazer determinadas coisas . A única diferenciação que se produz bem cedo estriba em que as mulheres se ocupam em certas fainas técnicas e os varões em outras. Mas isto não basta para isolar o fato técnico como alguma coisa peculiar aos olhos do primitivo, porque também o repertório de atos naturais é um pouco diferente na mulher e no varão. Que a mulher cultive o campo — foi a mulher a inventora da técnica agrícola — lhe parece tão natural como que de quando em quando se ocupe em parir.
3.° Mas também não adquire consciência da técnica em seu momento mais e delator — na invenção. O primitivo não sabe que pode inventar, e porque não o sabe, seu inventar não é um prévio e deliberado buscar soluções . Como antes sugeri, é antes a solução que o busca, e não o contrário. No manejo constante e indeliberado das coisas circundantes se produz de imediato, por puro acaso, uma situação que dá um resultado novo e útil. Por exemplo, atritando por diversão ou prurido um pau com outro nasce o fogo. Então o primitivo tem uma súbita visão de um novo nexo entre as coisas. O pau, que era alguma coisa para brigar, para apoiar-se, aparece como alguma coisa nova, como o que produz fogo. O primitivo, assim temos que imaginá-lo, fica aniquilado, porque sente como se a natureza de improviso houvesse feito penetrar nele um de seus mistérios. Porque o fogo era para ele um poder divinoide do mundo e lhe suscitava emoções religiosas. O novo fato, o pau que faz fogo, se intumesce por uma e outra razão de sentido mágico. Todas as técnicas primitivas têm originariamente um halo mágico e somente são técnicas para aquele homem pelo que têm de magia . Mais adiante veremos como a magia é, com efeito, uma técnica, ainda que falhada e ilusória.
Este homem, pois, não se sabe a si mesmo como inventor de seus inventos. A invenção lhe aparece como uma dimensão mais da natureza — o poder que esta tem de proporcionar-lhe, ela a ele, e não ao contrário, certos poderes. A produção de utensílios não lhe parece provir dele, como não proveem dele suas mãos e suas pernas. Não se sente homo faber. Encontra-se, portanto, numa situação bastante parecida à que Köhler descreve quando o chimpanzé cai subitamente em si de que um pau que tem na mão pode servir para um certo fim antes insuspeitado. Köhler chama-a “impressão do isso!”, já que esta é a expressão do homem quando de pronto se lhe faz patente uma nova relação possível entre as coisas . Tratar-se-ia, pois, da lei biológica chamada trial and error, tentativa e erro, aplicada à ordem consciente. O infusório “tenta” inumeráveis posturas e encontra uma delas que lhe produz efeitos favoráveis. Então a fixa como hábito.
Mas voltemos à técnica primitiva. Dá-se, pois, no homem ainda como natureza. A expressão mais própria dela seria dizer que verossimilmente as invenções do homem auroral, produto do puro acaso, obedecem ao cálculo de probabilidades; isto é, que dado o número de combinações espontâneas que são possíveis entre as coisas corresponde a elas uma cifra de probabilidade para que se lhe apresentem um dia em forma tal que ele veja nelas pré-formado um instrumento.