Propaganda do bom-humor. — Física e guarda-roupa. — Ou filósofo ou sonâmbulo
Não creio que a polêmica suscitada pelo Dr. Herbert Dingler no semanário inglês Nature contribua para esclarecer as coisas. Inspirou-a o mau-humor. E o mau-humor é estéril. Todas as grandes épocas souberam sustentar-se sobre o abismo de miséria que é a existência, graças ao esforço desportivo do sorriso. Por isso os gregos pensavam que o ofício principal dos deuses era sorrir e até rir. O rumor olímpico é, por excelência, a gargalhada. Se um povo novo como a Argentina resolvesse fazer do bom-humor uma instituição nacional a que toda a gente se submetesse, seu triunfo na história estaria assegurado. Mas não é fácil que o consiga. Porque todas as potências do mal estão bastante interessadas em instaurar por toda parte o mau-humor. Sabem que um povo onde o mau-humor se estabeleça é um povo destruído, agitado ao vento, pulverizado. (Entre parênteses: que estupendo momento para os pensadores de um povo jovem! Livres de todo preconceito, poder escumar os milênios da experiência humana e ensinar a seu povo os mandamentos da alta higiene histórica! São tão evidentes, tão simples de ver, tão claros de dizer! O mal é que os povos não podem atender esses evidentes imperativos senão num certo e preciso momento, passado o qual se tornam irremediavelmente surdos. Pois bem, para a Argentina o momento é este, este de agora! Mas eu não tenho por que meter-me em assuntos tais. A azáfama cotidiana me espanta; tenho que prosseguir dando voltas em torno dela, hoje como ontem, amanhã como hoje. Sorrimos um artigo mais!).
É indubitável, dizia eu, que o mesentério da física necessita uma boa limpeza. O esforço gigantesco que fez no último quarto de século deixou a máquina um pouco afrouxada. O crescimento de seu império cósmico foi — em precisão e em extensão — fabuloso. Por isso convém um alto na caminhada e um tratamento de serenidade .
Desde há anos, nas revistas mais técnicas desta ciência, aparecem com frequência artigos em que se manifesta a mais justificada inquietação . Começa a não ver-se clara a relação entre a doutrina a que se chegou e a realidade. De um lado estão os grandes fatos observados, de outro o aparato hipertênue das teorias, teias de aranha sutilíssimas, como espectrais, reduzidas quase a puras abstrações de simbolismo matemático. A correspondência entre estas teorias e aqueles fatos, entre o corpo das observações e o corpo dos conceitos ou doutrinas se fez equívoca. Há, sem dúvida, correspondência, mas não se sabe bem em que consiste. Às vezes parece como se o que a teoria física atual diz não tivesse nada que ver com as “coisas”.
Para que o leitor profano se represente de algum modo a questão, imagine que alguém lhe apresenta num papel uma série de operações aritméticas. Nesse papel não há senão números e signos matemáticos. Ali não se diz se se trata de contar libras esterlinas ou cadeiras ou cisnes. Suponhamos que o leitor entende essas contas no que têm de puras contas. Mas eis que, aqui mesmo, então, alguém acrescenta: isso que acaba o senhor de entender é a realidade das coisas, a natureza, o mundo, o “universo”. Quanto melhor haja entendido aqueles cálculos aritméticos, menos poderá entender que eles sejam a realidade, isto é, que de algum modo a representem, a descubram, a enunciem ou declarem. Sua impressão era precisamente que ali, naquele papel, não se falava absolutamente de coisas reais. Sentirá, pois, estranheza, a mesma que, em nossa adolescência, sentíamos quando pela primeira vez ouvíamos falar dos pitagóricos, de uns homens estranhos, consoante os quais as coisas são números . Os espectadores deixam no guarda-roupa do teatro seus sobretudos e recebem, em troca, fichas onde estão inscritos números. A cada ficha corresponde um sobretudo e um lugar do guarda-roupa; ao conjunto das fichas corresponde o conjunto ordenado dos sobretudos e de seus lugares. Graças a isso pode qualquer um com nossa ficha encontrar nosso sobretudo, ainda que jamais o tenha visto. Isto é, que as fichas nos fazem saber não pouco acerca dos sobretudos. E, contudo, uma ficha não se parece em coisa alguma a um sobretudo. Eis aqui como pode haver correspondência sem haver semelhança. O conjunto das fichas é a teoria física; o conjunto dos sobretudos é a natureza. Com uma diferença: as fichas são, ao fim e ao cabo, coisas tangíveis e visíveis como os sobretudos. Suprimam-se as fichas, ficam somente os entes ideais que são os números e suas combinações, e isto é o que constitui a teoria física. Portanto, alguma coisa que se parece à natureza muito menos que uma ficha a um sobretudo e que os cavalos às ostras.
A esta situação chegou a física atual. Uma situação bastante paradoxal sem ser irritante. É ela para o homem ocidental a ciência por excelência, o orgulho de toda sua civilização. Mas ciência parece querer dizer conhecimento, e conhecimento parece significar presença em nossa mente do que as coisas são. Mas a ciência física não nos põe na cabeça senão fichas menos ainda, números. Das próprias coisas não passa nada ou passa pouco mais que nada para nossa mente. Justifica-se prosseguir chamando a isso conhecimento? Não se poderia, com igual fundamento, chamar-lhe guarda-roupa?
Não vou eu dirimir a questão. Mas é o caso que os próprios físicos não puderam sequer perceber o estranho caráter que, enquanto conhecimento, oferece sua ciência. E alguns deles resolveram declarar que a física é um “conhecimento simbólico”, o que tem dos sobretudos quem jamais os viu, mas possui o conjunto das fichas e sabe que a cada uma destas corresponde um daqueles e o lugar do cabide em que está pendurado. Ao que não se resolveram nem estes nem os outros físicos é a refletir energicamente sobre se um conhecimento simbólico é, a sério, conhecimento . Por que há-de ser a física um conhecimento? Porventura é o conhecimento uma coisa tão clara que pareça justificado o empenho das “ciências” em ser tidas por conhecimento? Por que não há-de ser a física, e em geral as “ciências”, outra coisa: por exemplo, técnica e nada mais, técnica e nada menos? Depois de tudo, se alguém dissesse que o conhecimento foi somente uma tentativa e uma ilusão dos homens da Grécia, que terminou em glorioso fracasso, diria alguma coisa menos extravagante e muito mais profunda do que parece, ainda que talvez não seja afinal de contas verdadeira.
Veja-se, pois, como na questão formulada pelo Dr. Dingler fermentam outras muito mais graves e mais radicais. Mas o Dr. Dingler e a maioria de suas vítimas mantêm a polêmica dentro da órbita gremial. Não querem embarcar-se em problemas filosóficos. Fazem bem, que diabo! A física serve para muitas coisas, enquanto a filosofia não serve para nada. Já o disse, registre-se, um filósofo, o padrão dos filósofos, Aristóteles. Precisamente por isso sou eu filósofo: porque não serve para nada sê-lo. A notória “inutilidade” da filosofia é talvez o sintoma mais favorável para que vejamos nela o verdadeiro conhecimento. Uma coisa que serve é uma coisa que serve para outra, e nessa medida é servil. A filosofia, que é a vida autêntica, a vida possuindo-se a si mesma, não é útil para nada alheio a ela própria. Nela, o homem é somente servo de si mesmo, o que quer dizer que somente nela o homem é senhor de si mesmo. Mas, claro está, a coisa não tem importância. Fica o leitor em inteira liberdade de escolher entre estas duas coisas: ou ser filósofo ou ser sonâmbulo. Os físicos, em geral, comportam-se nictobatamente dentro de sua física, que é o sonho egrégio, a modorra genial do Ocidente.
Contudo, alguns destes homens formidáveis que irritaram o excelente Dr. Dingler, homens como Eddington, como Milne, Wittrow, Wheele, Robertson, isto é, a extrema vanguarda da física no dia em que escrevo, encontraram-se com a física que estavam amassando com suas pulcras mãos matemáticas se lhes fermentava e se lhes convertia em alguma coisa assim como filosofia. Lembrem-se as palavras da resposta que dá Eddington a seu agressor e que citei no artigo anterior: “Não há nada em todo o sistema das leis físicas que não possa ser deduzido inequivocamente de considerações epistemológicas.” É esta uma das coisas que puseram mais frenético ao Dr. Dingler. Considerações epistemológicas! Mas, isso é filosofia! Eddington e congêneres entregam, manietada, a física à filosofia! Traição!
Porque, como disse eu, soaram palavras fortes nesta rixa de cientistas. Dingler usa literalmente a palavra “traidores”. Logo veremos com que gentil graça Milne quase chama a Dingler “cigano”.
Prossigamos assistindo à pendência com bom-humor, mas ao mesmo tempo com sincero fervor. Não pode ser-nos indiferente o que acontece à física. Seja ou não conhecimento, seja-o num ou noutro sentido, o indiscutível é que constitui a maravilha do Ocidente. Se é ela questionável, o é até a raiz de toda a cultura ocidental. Sem a rigorosa disciplina secularmente depurada e sustentada pelo pensamento físico, a mente europeia perderia todas suas arestas específicas e retrogradaria ao confuso e aflitivo pensar do asiático ou do africano. A própria filosofia, que necessita tão poucas coisas, carece, sem remissão, da física para poder ser o contrário dela, que é sua missão.
La Nación, de Buenos Aires, 10 de outubro de 1937.