1) É possível que o que mais nos fere seja a suposição de que as intuições míticas estão presentes em nossa compreensão das regras lógicas. Nelas, com efeito, a soberania da razão costuma experimentar-se de modo mais conclusivo. No entanto, o sentido dessa soberania se revela precisamente, ante uma consideração mais atenta, como a irradiação da consciência mítica sobre os imperativos de nosso trabalho conceitual. Vejamos como isso sucede.

Se considerarmos o problema esquemáticamente, podemos assinalar quatro concepções principais acerca do sentido que deve atribuir-se aos princípios lógicos.

O psicologismo do século XIX, criticado por Husserl (e antes dele, em parte, por Frege e Bolzano), recomendou considerar esses princípios como regularidades empíricas discerníveis na conduta do pensamento. Para a versão extrema do psicologismo, o sentimento de constricção que experimentamos no trânsito de uma proposição a outra seria o resultado de um mero nexo causal hipotético, segundo o qual o reconhecimento factual de um julgamento de determinada figura criaria a impossibilidade factual de rejeitar outro julgamento de determinada figura, ou seja, aquele que segue ao primeiro em virtude de alguma regra lógica. Portanto, as regras do pensamento seriam descrições de certas relações repetíveis entre fatos que se apresentam dentro do sistema psíquico ou nervoso do homem.

2) A crítica de Husserl reprovou nesta doutrina a ruína das convicções em que se apoiava a cultura espiritual da Europa, assim como a total deformação do sentido que verdadeiramente conferimos a nossa lógica. O psicologismo nos obriga, com efeito, a extrair a seguinte conclusão desalentadora: nosso saber, em sua totalidade, está guiado por princípios que não têm a propriedade de ser normas obrigatórias para o pensamento como tal, e que tampouco garantem que se “deva pensar assim”; simplesmente, descreve como funciona nosso cérebro em um âmbito determinado de sua atividade. Portanto, permitem supor que um cérebro construído de outro modo pensaria segundo uma lógica diferente e que a nossa seria “contingente”, no sentido, de que dependeria da organização corporal da espécie humana. Toda a concepção do mundo, obtida em séculos de trabalho científico e que se baseia imutavelmente na obrigatoriedade de um mesmo sistema de regras estritas de pensamento, seria, segundo esta premissa, somente um conjunto de instrumentos aptos para um trato eficaz com as coisas que a espécie assimilou; seria tão absurdo perguntar por sua “verdade” ou certeza cognitivas como pela “verdade” ou certeza de um martelo ou de uma mola.

O relativismo psicológico não permite supor legitimamente que o pensamento científico não possa ser identificado como uma reação fisiológica, que não só nos arme melhor para dominar o mundo, mas que também nos revele esse mundo em sua verdade. De tal modo, se torna impossível supor uma descontinuidade entre a vigilância animal de nosso corpo e a paixão de nossas explorações intelectuais. Nesse relativismo se oculta um erro clássico, o hysteron proteron de todos os céticos, que tentam utilizar os recursos da demonstração para afirmar a nulidade de toda demonstração; os psicologistas, ao descreverem a lógica como um mecanismo da “vida”, invocam as regras da lógica, consideradas como órgão de argumentação legítima: para negar-lhes toda justificativa racional, empregam-nas como se estivessem racionalmente justificadas. Portanto, fecham-se em um círculo sem saída. Existe, sem dúvida, uma saída, mas, para chegar a ela, requer-se previamente o abandono dos caminhos já trilhados dos “hábitos” empiristas. As proposições lógicas não dizem nada acerca do funcionamento efetivo de nosso cérebro; tampouco pressupõem qualquer realidade da experiência, qualquer âmbito do “psíquico”, nem qualquer fato. São normas absolutamente obrigatórias e precedem qualquer pensamento factual; não dizem nada acerca de como se pensa, mas sim acerca de como se deve pensar corretamente. Não contêm referências temporais nem podem supor legitimamente que o homem exista, e com efeito pense, nem que exista o mundo. Pertencem ao mundo das relações ideais, que descobre seu caráter estrito e obrigatório ante o olhar radical do pensador emancipado dos preconceitos do empirismo biológico. Esse mundo contém, a priori, as condições não éticas de qualquer pensamento concreto; no instante mesmo em que as compreendemos reconhecemos espontaneamente seu caráter forçoso.

KOLAKOWSKI, L. A Presença do mito. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981.

Leszek Kolakowski