Meyerson – Objeções à axiomática

Émile Meyerson, Du Cheminement de la Pensée, pp. 306-309.

[…] se tudo se passa no interior do espírito, se o intelecto, embora evoluindo, permanece rigorosamente encerrado em si mesmo, como é possível que nele se crie, não a esperança — com efeito, isso seria demasiado modesto —, mas a certeza absoluta de que esses resultados serão aplicáveis ao real? Na verdade, evidentemente, essa é uma ideia que nunca abandona o matemático.

Depois de referir a concepção axiomática da matemática de Einstein, Émile Meyerson prossegue a sua análise:

De fato será possível elaborar uma matemática completamente estranha a tudo quanto provenha da intuição? Ferdinand Gonseth, apoiado por Hadamard, põe-no em dúvida. «A matemática», afirma ele, «apenas artificialmente, só aparentemente pode ser separada da sua fundamentação intuitiva e do seu prolongamento no real.» De tal modo que «não há nenhum domínio da matemática, por pequeno que seja, onde a axiomática possa bastar-se a si mesma».

Mas supondo mesmo que uma tal elaboração seja possível, ficará sempre por explicar se o real não desempenha nela qualquer papel e como é que os enunciados a que chega manifestam acordo tão perfeito com as coisas. A solução […] que consiste em admitir que, no fundo, tal acordo não existe assume, na verdade, carácter demasiado paradoxal. Ferdinand Gonseth indaga a esse respeito, e parece que com alguma razão, se Einstein consentiria que fosse aplicada uma fórmula análoga à teoria dele, afirmando-se que, «na medida em que a relatividade se aplica ao real, de modo algum tem fundamentação segura, e que, na medida em que é segura, se não aplica ao real».

Mas não nos parece que o próprio Ferdinand Gonseth vá suficientemente longe nesta ordem de ideias. Com efeito, pensa que «não há limite a transpor para passar da geometria à física» e que «a certeza matemática é exatamente da mesma espécie que as outras certezas da vida». Há em tais afirmações algo de verdadeiro. Mas, tomadas à letra, afiguram-se de certeza contrárias — e é sobretudo o caso daquela que está contida na segunda das frases que acabamos de citar— à crença de todos aqueles que, por pouco que seja, se habituaram a pensar de modo matemático. Referimo-nos, que isso fique bem claro, à crença professada pelo matemático «quando não disputa» (para nos servirmos da expressão adequada de Jean le Rond D’Alembert), porque sem tal reserva seria pretensioso opormos a nossa opinião à de um matemático profissional. Mas será possível contestar seriamente que o matemático, ao invés do físico, procede apenas dedutivamente e que a sua fé na justeza das conclusões alcançadas, mediante puras operações mentais, é completamente diferente da deste último em casos análogos? Quando é que um matemático sentiu a necessidade de confirmar os seus resultados pela observação do real, como sempre pratica o físico, aplicando-se no registo dos mais insignificantes desacordos, enquanto o geômetra de modo algum se perturba com a flagrante inexatidão da sua figura? Mesmo onde o matemático e o físico parecem intimamente dependentes, tal como nos raciocínios relativistas, basta prestarmos atenção para nos apercebermos de que aquilo que é próprio do primeiro de modo algum é caraterístico do segundo. Sem dúvida, Lobatschewsky, Riemann, Helmholtz suscitaram observações tendentes a reconhecer qual é a geometria que deve ser aplicada ao real, mas jamais alguém pretendeu que essas observações poderiam influir no que quer que fosse sobre a própria constituição das teorias dos espaços não euclidianos; essas concepções surgiram e desenvolveram-se anteriormente a qualquer verificação física, por via puramente dedutiva.

Ferdinand Gonseth é de opinião que se não deve dizer «rigoroso como um teorema de geometria»; «intuitivo como um teorema de geometria», assim é que deveria ser dito; mas tal modificação não implica, de certeza, no seu pensamento qualquer diminuição do rigor caraterístico do raciocínio. […]

O matemático, por mais abstratos, por mais aparentemente afastados do mundo dos objetos do senso comum sejam os seus pensamentos, permanece Intimamente convencido de que, se a ele consegue voltar, se, por meio de artifício, logra eliminar da sua proposição aquilo que respeita a grandezas irreais (compreenda-se que usemos aqui o termo no seu sentido mais lato, abrangendo não só o imaginário matemático, como tudo aquilo que não é grandeza, como é concebida pelo senso comum), ela deverá achar-se de acordo com o real, deverá regê-lo estritamente, por toda a parte e sempre, como acontece com o número. Dir-se-á que na matemática há acordo entre o espírito e o real. Sem dúvida. Todavia, o que é paradoxal é a verificação de até que ponto esse acordo persiste, enquanto os rumos do espírito e do real parecem afastar-se tão manifestamente um do outro.