Brun (Mão) – A mão e o espírito

Paul Broca, fazendo um estudo de anatomia comparada entre o homem e o macaco, por ocasião de um trabalho sobre a ordem dos primatas, sublinha que estamos muito longe de nos entendermos sobre o que é um pé e o que é uma mão1; a tal ponto que quadrúmanos e quadrúpedes não nos fornecem as definições claras e distintas que se poderiam esperar. Procurando saber o que é a mão, Broca cita, desde logo, uma definição de Cuvier: «O que constitui a mão é a faculdade de opor o polegar aos outros dedos para agarrar as coisas mais ínfimas»2; ora, uma tal definição não permite distinguir rigorosamente a mão do pé, pois são numerosos os exemplos de mutilados que foram capazes de fazer das extremidades dos seus membros inferiores verdadeiros orgãos de preensão3, para além de numerosas espécies de quadrúmanos [11] possuírem mãos sem polegar, ou mãos nas quais o polegar não é oponível aos outros dedos.

Se preferirmos a definição de Isidore Geoffroy Saint-Hilaire, criticando a de Cuvier: «A mão é uma extremidade provida de dedos alongados, profundamente separados, muito móveis, muito flexíveis e, por isso, susceptíveis de agarrar»4, somos forçados a reconhecer que uma tal definição se adequa igualmente aos pés dos papagaios ou aos dos camaleões.

Broca acaba então por nos dizer que, se queremos verdadeiramente distinguir a mão do pé, teremos obrigatoriamente de alicerçar a distinção numa série de características anatômicas onde incluiremos, não apenas as extremidades dos membros, mas igualmente os próprios membros na sua totalidade. Chegado ao fim da sua análise, Broca escreve que a mão, emancipada da grosseira função do pé, se toma adequada a uma multiplicidade de utilizações: «Pode chegar a todos os pontos da superfície do corpo e constitui o instrumento, por excelência, do toque, da preensão e do trabalho. O homem, sendo o único mamífero absolutamente bípede, é também o único cuja mão é perfeita».5

A direcção de um tal movimento de pensamento merece ser cuidadosamente sublinhada: para poder distinguir a mão do pé, foi necessário falar-se de membros anteriores e posteriores; daí, foi necessário passar a todo o organismo, para diferenciar o andar dos macacos que se apoiam na face palmar das suas mãos anteriores, da dos antropóides que, sendo verdadeiros bípedes, se apoiam, ao andar, sobre a face dorsal das suas mãos. Finalmente, foi necessário chegar ao homem para encontrar a mão «perfeita», a mão-modelo. Por consequência, é o homem, na sua totalidade, que faz a mão; foi pelo homem que Broca teve acesso à mão, e não pela mão que teve acesso ao homem; porque a extremidade do membro torácico não pôde ser definida independentemente do próprio membro, porque este nos reenviou ao organismo total e porque, finalmente, tivemos de nos socorrer do andamento desse organismo para poder então — e só então — definir a mão.

O problema é, precisamente, saber se esse andamento se limita a uma marcha, quer dizer, a um tipo de locomoção específica, ou se traduz uma exploração cujas dimensões espaciais estão longe [12] de esgotar a sua natureza. Porque quem diz andamento não diz somente deslocação, mas diz também procura; e no andamento do homem a mão adianta-se, por assim dizer, ao seu corpo: o homem que agarra tenta, ao mesmo tempo, agarrar-se a qualquer coisa; o homem que toca espera, por sua vez, ser tocado. Toda a manutenção implica, portanto, uma intenção que a extensão do braço não faz senão prolongar, e eis por que a mão, tal como a linguagem que vai marcando muitas vezes com os seus gestos, é a grande exploradora das distâncias e da dimensão no seio das quais o homem se move e existe. A mão é a medida do homem; mas será que esta é a medida Do homem por, saindo dele, lhe dar uma preensão do mundo, ou será Do homem porque o define e o limita, fazendo-o sentir a experiência de estar profunda e dolorosamente preso no mundo?

É conhecida a célebre afirmação de Aristóteles, criticando Anaxágoras: «não é por ter mãos que o homem é o mais inteligente dos seres, mas é por ser o mais inteligente dos seres que o homem tem mãos.»6; esta oposição de pontos de vista parece pôr o problema de saber se a sequência correcta vai do preender ao compreender, ou se é, bem ao contrário, do compreender ao preender. Em todo o caso, qualquer das duas atitudes pode levarmos a utilizar subrepticiamente alguns raciocínios especiais; com efeito, ao tentar esclarecer um dos termos através do outro, podemos estar a sacrificar-nos, seja aos finalismos demasiado fáceis que «justificam» a anatomia da mão, seja aos evolucionismos antropomórficos, leia-se antropocêntricos, que não fogem à culpa de ser vítimas de uma ilusão de retrospectividade.

O compreender não é um simples epifenómeno do preender, tal como o preender não é, tão pouco, uma simples aplicação executória do compreender: preender e compreender implicam duas experiências que se situam ambas no próprio centro dessa exploração da Dimensão onde se move toda a existência humana; Dimensão que não representa apenas o quadro espacial das deslocações possíveis, mas que se desvenda, sobretudo, como o entre-os-dois que toda a consciência do outro implica. Preender e compreender não são, nem actividades puramente mecânicas, nem especulações puramente intelectuais; são aspectos desse esforço do homem por se recuperar e libertar de si mesmo. [13]

É por isso que aquilo que Platão diz sobre as mãos, quando, no Timeu, nos narra a criação do mundo e do homem, é muito mais profundo do que uma interpretação literal do texto podería fazer crer. O Demiurgo, aprendamo-lo, não deixou nenhum elemento, nem nenhuma qualidade, fora do mundo e quis fazer deste um Vivente perfeito, único, isento de doença e de velhice7; por isso este Mundo é esférico e gira num movimento circular, graças ao qual nunca sai de si. E, precisamente porque o Mundo se basta a si próprio, Platão declara: «As mãos, que servem para agarrar ou afastar qualquer coisa, não teriam nenhuma utilidade, e o artista pensou que não era necessário adaptar-lhe esses membros supérfluos, nem pés, nem, em geral, qualquer aparelho apropriado para andar.»8

O mundo ignora, portanto, a distância; não está condenado a errar para a esquerda, para a direita, para cima, para baixo, para a frente ou para trás. Tudo é bem diferente para o homem cuja alma foi lançada «aos instrumentos do tempo».9 A cabeça, que é a parte mais divina de todas as que nele o são, circula sobre uma terra cheia de saliências e depressões de todas as qualidades;10 foi por isso necessário que recebesse um veículo portador que fosse prolongado por quatro membros. Essa é a função do corpo que, pela preensão e pelo apoio que os seus membros lhe dão, é capaz de progredir através dos lugares que atravessa, transportando no topo de tudo o resto a morada daquilo que há em nós de mais divino e de mais sagrado: «Eis por que pés e mãos nos têm conduzido a todos».11 A mão é, portanto, aquilo com que o homem procura assegurar-se das suas preensões; quanto à compreensão, é aquilo para que tendem as preensões sucessivas através das quais o homem explora o mundo, à semelhança da sinopse que é o limite para o qual tende o filósofo, para lá de todos os pontos de vista parciais e limitados.

A mão é assim, para Platão, aquilo com que o homem tenta orientar a sua progressão, ao mesmo tempo que adquire a perigosa experiência da distância do mundo. [14] Mas, se ele não é Argos com cem olhos, tão pouco é Briareu com cem mãos. Toda a mão que agarra deve primeiro escolher a sua presa. Toda a mão que toca descobre que a superfície é o limiar de uma profundeza que permanece inacessível. Quanto à mão que modela, não transporta a vida.

É por isso que todas as mãos que manipulam materiais que vão transformando, todo o agarrar que se prolonga em empreendimentos onde o utensílio permite dispensar a mão, não nos devem fazer esquecer o que há de simples, de profundamente trágico e de verdadeiramente significativo no gesto do homem que procura dar a mão a outro, ou a tomar outra mão na sua, com o fim de conseguir chegar a uma experiência cuja própria impossibilidade lhe esclarece todo o sentido.

BRUN, J. A mão e o espírito. Tradução: Mário Rui Almeida Matos. Lisboa: Edições 70, 1991.

  1. Paul Broca, «L’ordre des primates. Parallèle anatomique de l’homme et des singes» (Bulletin de la Société d’anthropologie, 2.a Série, t. IV. p. 228; 1 de Abril de 1869) in: Mémoires d’anthropologie, Paris, 1877 p. 43. 

  2. Op. Cit., p. 45 

  3. Broca cita o caso de um saltimbanco que apresentou à sociedade anatômica e que «nascido sem mãos e tendo só uma perna, executa com o seu único pé a maior parte dos actos que podemos executar com as mãos. Escrevia, desenhava, barbeava-se, apanhava um alfinete, enfiava uma agulha, carregava uma pistola e sacava-a com precisão, etc.» (op. cit., p. 47). Broca cita igualmente os exemplos, lembrados por I. G. Saint-Hilaire, dos remadores chineses, dos resineiros das Landes e dos pintores sem mãos que levaram os seus pés a adquirir todas as funções preensíveis da mão. Por ocasião de um estudo de anatomia comparada do pé e da mão, T. H. Huxley retoma numerosos exemplos citados por Broca (cf. T. H. Huxley, De la place de 1’homme dans la nature, trad. do Dr. E. Daily, Paris, 1868, p. 212 e seg.). 

  4. Op. cit., p. 49 

  5. Op. cit., p. 54 

  6. As partes dos animais, IV, 10, 687 a 8. 

  7. Timeu, 33 a. 

  8. Op. cit., 33 d. 

  9. Op. cit., 44 a. 

  10. Op. cit., 44 d. 

  11. Op. cit., 44 e.