Gille: A ciência nasceu de necessidades técnicas?

B. Gille, Os engenheiros do Renascimento. Ed. Hermann, Paris, 1964.

É sabido que os historiadores travam discussões sobre o papel exato da técnica no nascimento da ciência clássica. Uns negam qualquer influência sensível, outros lhe atribuem uma importância primordial.

Certamente M. Koyré pode ter razão quando apresenta sua tese. O aparecimento do canhão não provocou o nascimento da dinâmica nova: muito ao contrário, é na experiência dos fabricantes de fogos de artifício que aniquilou-se o esforço de Leonardo da Vinci, Tartaglia e Benedetti. As necessidades da navegação, do cômputo eclesiástico, da astrologia poderiam, e deveriam, provocar um esforço de correção das tábuas astronômicas, o que não ocorreu: elas não puderam incitar Copérnico a inverter a ordem das esferas celestes e a colocar o sol no centro do Universo. As exigências do comércio, a extensão das trocas e das relações bancárias certamente provocaram a difusão dos conhecimentos matemáticos elementares, assim como aquela da contabilidade; elas não podem explicar o espetacular progresso realizado pelos algebristas italianos na primeira metade do século XVI. […]

Seguramente, a intuição técnica não tem relação alguma com a descoberta científica e seria bastante inútil atribuir a lei da inércia a Francesco di Giorgio, inventor do regulador de esfera [Regulador de esferas, sistema de comando destinado a manter constante o valor de uma variável, quaisquer que sejam as perturbações que poderiam fazê-la variar.]. É claro que a experiência, que é um dos traços fundamentais da ciência clássica, não tem relação alguma com esta experiência tomada no sentido da observação direta, de senso comum, que foi mesmo, durante muito tempo, um obstáculo. […]

A experiência clássica é dirigida, provocada: a experiência técnica é experimentada, com tudo o que isto comporta de confusão e complexidade. Não existe, portanto, no princípio — insistamos bastante nisso —, nenhuma medida comum entre as duas.

Ainda convém precisar o alcance exato das palavras que usamos. Certos historiadores ergueram-se, com razão, contra a identificação simplista que se faz com frequência entre essa experiência de senso comum e a observação experimental do cientista. Mas a experiência técnica, que foi, sem dúvida, em seus primórdios, em larga escala, uma experiência de senso comum, ainda o era em meados do século XV? Pensamos, de nossa parte, que os técnicos tinham, também eles, classificado seus problemas, distinguido componentes, elaborado uma primeira triagem entre as noções, para não dizer entre os conceitos, que lhes oferecia a prática cotidiana. Em todo caso, é curioso constatar, precisamente no decorrer desse século XV, que os problemas essenciais dos cientistas e dos técnicos coincidirão de maneira bastante exata. Às incompreensões de uns correspondiam as hesitações de outros e os problemas com os quais todo mundo esbarrava concentravam-se, de certa forma, em pontos bem definidos.

Uma ciência apaixonada pelo real, desejosa de confrontar seus resultados com a experiência, e uma técnica preocupada em dar-se explicações mais válidas, mais gerais, tornada, porém, cada vez mais perita em ficar cifrada, deviam ter, fatalmente, estreitos contatos. Se uma abandonasse um pouco de sua abstração, se a outra buscava a generalização, o encontro seria inevitável. […]

Por conseguinte, era plausível prever que ocorreriam cruzamentos, que, em outras palavras, engenheiros, não só porque eram engenheiros, participariam desse movimento que deu origem à ciência clássica. Quando M. Koyré declara que Benedetti se aproximou da verdade, não porque era soldado da artilharia e engenheiro, mas porque tivera conhecimento de Arquimedes, está negando muito simplesmente este notável acordo que se faz naquele momento entre as duas ordens de pensamento. […] Contudo, esta comunhão deveria prosseguir por muito tempo e, até o final do século XVIII, os cientistas preocuparam-se com técnica da mesma forma que os técnicos vangloriavam-se de ciência.