António Sérgio – Criatividade do Intelecto

A obra própria do entendimento humano não é tal a de separar umas noções abstratas nuns objetos concretos que lhe seriam dados; […] o seu dom caraterístico não é a ação de abstrair; […] é sim a edificação de uma realidade concreta — e cada vez mais concreta — a partir dos problemas que o sentir propõe (dos problemas que nos propõe, e não dos objetos que dá, porque nenhum ele nos dá): e isto pela livre criação de Formas, de conjunturas variadas, que são relações inteligíveis. Diremos, em suma, que as ideias gerais não são tal abstraídas de um percepto dado, mas criadas por nós por relacionação mental, e que as teorias científicas são fantasia da mente para conseguir interpretar num conjunto harmonioso o acervo de sinais que nos envia o Mundo. O alvo da inteligência não é, pois, o abstrato, mas sim o todo e o concreto: e o trabalho de criação a que se dedica o sábio é da índole da faina a que se consagra o artista. Quanto a nós, a diferença capital que entre os dois se adverte arreiga em que a obra de criação do artista não tem nunca de submeter-se à verificação ou à prova, ao passo que o labor de criação do cientista demanda a contrastaria de uma invenção ulterior, a que se chama verificação experimental da hipótese: porém, o papel da fantasia é primacial em ambos. A verdade, digo, não se nos oferece: inventa-se. De todas as variadas invenções possíveis é verdade a que a experiência humana confirmou por fim, e que entra num sistema experimental-matemático de sustentação recíproca de Formas. Nunca a experiência nos presenteia a verdade: seleciona entre as interpretações que lhe nós propomos, fantasiadas por nós. À teoria abstracionista do entendimento humano (que é a da tese empirista) têm sido contrapostas concepções românticas, —a do descrédito da inteligência, a da intuição instintiva, a da simples fé sem razão, — oriundas da certeza de que uma abstração exangue não poderia traduzir a complexidade infinita, toda a vastidão do real. E não poderia, é certo. O remédio, todavia, não consiste em renegar e abocanhar o intelecto: está apenas em recorrer a uma noção exata do carácter operatório do entendimento humano, — livre atividade de criação de hipóteses que é de progressiva concretização e de adensar de ideias, em avanço indefinido para a adequação do todo, para a máxima coerência numa concepção amplíssima. Ao fenomenismo da imagem, ao realismo da matéria, — à doutrina de um George Berkeley e à dos que ele quis combater, — oporemos a recíproca sustentação das Formas, num idealismo matemático de inspiração platônica. Por um processo ascético de des-subjetivação do pensar (por uma ideal tecedura de relações entendíveis que são Formas independentes do nosso eu sensível) se podem ir apurando em uma mesma marcha a consciência intelectual do verdadeiro sábio e o objeto físico que essa consciência cria. Uma e outro, aliás, são ideais inatingíveis da nossa elevação ao Espírito, de uma só aspiração ao pensar puro e absoluto, ao alto Bem intelectual que o é também moral, a uma Razão teórica que é ao mesmo tempo prática, e onde vemos a única reverberação divina que transluz na noite da experiência humana.

António Sérgio, prefácio à trad. port. de Três Diálogos entre Hilas e Filonous, de Berkeley, 1948, pp. xxxvii-xxxix.