Claude Chrétien – A ciência se transforma em mito

Claude Chrétien, «A Ciência em Ação»

Assim, quando Auguste Comte saúda, como todo o século XIX , a “revolução” científica e o advento do “estado positivo”, está confiando à ciência o encargo de garantir, na ordem religiosa e política, a substituição dos mitos ou ideologias obsoletos. O que quer dizer que, se ele consagra a ruptura e instaura uma nova ordem do espírito, não ignora as necessidades irracionais do homem e da sociedade. A política positiva visará nele uma gestão racional e competente das relações sociais, a religião positiva, reunir os indivíduos no “Grande Ser” que é a humanidade histórica. Ora, “a própria ciência, desde que concebida como um todo coerente e do qual se extraem modos de representação e de comportamento, representa o papel de um mito” (P. Smith)1. Logicamente, certos discípulos de Auguste Comte levarão a doutrina positivista até o cientificismo, isto é, até um absoluto na ordem do saber e do poder que lhe confere estatuto de mito. A ciência substitui então toda forma de conhecimento e seu império estende-se a todos os campos da vida e da ação. Ela ocupa o lugar original, de onde pretende tudo fundar e reger. Os homens de ciência (Galileu, Newton, Bernard Palissy, Pasteur, Einstein…) tornam-se as Figuras lendárias de uma nova gesta que celebra esses pioneiros da humanidade moderna. As ideias, imagens e valores técnico-científicos constituem o pano de fundo de referência de que a sociedade necessita para codificar tudo o que, nela, faz sentido e comunica. O processo experimental e operatório das ciências passa a ser o cânone de um novo ritual que normaliza todas as práticas: educativa, política, jurídica, terapêutica, cultural etc. A ciência que se transforma em mito tende portanto a constituir a trama de todo o tecido social.

Como todo mito, o cientificismo tem seus sacerdotes e profetas (cf. pp. 26-27, Marcelin Berthelot, Ernest Renan ou Jacques Monod). Mas ele é essencialmente um fenômeno anônimo e difuso, porque responde à necessidade que tem a sociedade moderna (como toda sociedade) de garantir sua identidade e sua unidade. O que quer dizer que se ela surge muito justamente como perversão da ciência e desconhecimento de seus limites, isto é imputável não à sociedade em si, mas à sociedade que não pode deixar de explorar para seus próprios fins uma obra na qual ela se admira e gostaria de se refletir. O que quer dizer também que o cientificismo é vivaz, que, profundamente arraigado na sociedade, resiste às provações (cf. p. 31) e condenações (Bergson, Heidegger, Merleau-Ponty, dentre outros) e que repercutirá nas cabeças e nos costumes enquanto a sociedade não diversificar seus valores. Porém, se ele serve aos interesses da sociedade, desserve àqueles da ciência, que se vê assim fraudada e falsificada. As ideias que ela produz, relativas e provisórias, transformam-se em ídolos; a obra de cultura passa a ser objeto de culto; as teorias, teologia; a submissão à razão, demissão da razão. O sucesso social da ciência representa portanto, paradoxalmente, o maior risco para ela, visto que a reconduz ao plano do mito que ela pretende superar.


  1. P. Smith, artigo “Mito: abordagem etno-sociológica”, Encyclopaedia Universalis.