de Castro – Ciência Moderna

Primeiramente, há que entender que doravante ao se falar de ciência é desnecessário o qualificador moderna, pois esta difere, como já dito, inteiramente do que era a scientia medieval e do que era a episteme grega, embora nos discursos destas já se prenunciava uma possível leitura que vai justamente fundamentar a “ciência” nos tempos modernos, como veremos adiante. Em segundo lugar, fica indicado o pseudo-afastamento da ciência da filosofia, como se dava na episteme, e da teologia, como se dava na scientia. Diferentemente destas últimas a ciência fundamenta-se no “sujeito cartesiano”, e a “filosofia” que dele procede é agora subserviente à ciência, uma filosofia da ciência. Esta vai investigar e propor as bases para o que é conhecível, o que é conhecimento e o que é certeza. Descartes vai lançar as fundações desta nova metafísica da modernidade, sobre uma interpretação do ente e concepção da verdade como “certeza”, a fundamentum inconcussum veritatis, o sub-jectum que de si mesmo subjace todas as modalidades de qualquer fenômeno.

Assim, em pleno acordo à metafísica da modernidade (HEIDEGGER, 2002c, p. 114), a representação, Descartes inaugura seu fundamento na díade sujeito-objeto:

Em todo «eu represento», o eu que representa é, antes, muito mais essencial e é necessariamente co-representado, a saber, como aquele em direção ao qual, em retorno ao qual e diante do qual todo re-presentado é colocado. Para tanto, não é necessário um voltar-se para e um retomar para mim expressos, um retomar para aquele que representa. Na intuição imediata de algo, em toda presentificação, em toda lembrança, em toda expectativa, aquilo que é desse modo representado para mim por meio do representar é colocado diante de mim, de tal forma que eu mesmo não me torno aí explicitamente objeto de um representar, mas, contudo, sou entregue a «mim» no representar objetivo, e, em verdade, somente por meio desse representar. Na medida em que todo re-presentar entrega o objeto a ser re-presentado e o objeto representado ao homem que representa, o homem que re-presenta é «co-representado» dessa maneira peculiar e discreta. (HEIDEGGER, 2007, p. 114)

Examinemos agora as consequências. Comecemos por examinar dois aforismos de Heidegger, sobre a ciência que acreditamos dar o acorde exato desta “melodia”, cantarolada ou pelo menos entoada por todos nos Tempos Modernos, a ciência. Talvez o mais contundente de todos os aforismos seja “a ciência não pensa”, enunciado no curso, que posteriormente se tornou livro: “Que significa pensar?” (SCHNEIDER, 2005); traduzido em francês como “O que se chama pensar?” (HEIDEGGER, 1992), embora segundo Le Dictionnaire Martin Heidegger (2013, p. 1199), seu título fosse melhor traduzido por “O que é que se chama pensar?”, ou “O que chama (convida) a pensar?”.

Para Le Dictionnaire Martin Heidegger (ibid.), ao mesmo tempo que atribui à ciência um caráter definitivo, não devemos nos enganar sobre a aparente hostilidade à ciência desta proposição. “Esta frase não é dita contra a ciência mas para ela, de alguma maneira para sua direção: que a ciência não pensa é precisamente o que lhe permite ser uma ciência”. Mais tarde em uma entrevista televisada com Richard Wisser, Heidegger (1983, p. 95) retoma esta frase e afirma que pretendia dizer simplesmente que “a ciência não se move na dimensão da filosofia”, embora sem o saber, ela se ligue a esta dimensão:

Por exemplo: a física move-se no espaço e no tempo e no movimento. A ciência enquanto ciência não pode decidir disto que é o movimento, o espaço e o tempo. Logo a ciência não pensa, ela não pode mesmo pensar deste sentido com seu métodos. Não posso dizer, por exemplo, com os métodos da física, aquilo que é a física. Aquilo que é a física, não posso senão pensar à maneira de uma interrogação filosófica. A frase “a ciência não pensa”, não é uma reprovação, mas é uma simples constatação da estrutura interna da ciência: é próprio de sua essência que, de um lado, ela depende disto que a filosofia pensa, mas de outro lado, ela esqueça ela mesma e negligencie aquilo que aí exige de ser pensado.

Outro aforismo contundente é aquele que consta do ensaio “Ciência e pensamento do sentido” (2002b): “a ciência é a teoria do real” (ibid. p. 40). Para examinar esta afirmação Heidegger começa por uma interpretação do que denomina “real” nesta frase. “O real preenche e cumpre o setor da operação, daquilo que opera”. O que leva a questionar este “operar”, e assim chegar à “fazer”, porém guardando um sentido original de “viger numa vigência”. “Assim o real é o vigente”. “Operar” (wirken) apela um modo de o real “se realizar” (tornar-se real), “de o vigente viger e estar em vigor”. A obra (Werk) é a tradução do ergon grego, não referido a uma causa efficiens, nem pensado segundo causa-efeito, mas como “o que se per-faz num ergon é o que se leva a plenitude da vigência” (ibid. p. 43).

Em direção a estes sentidos e significados é que deve-se entender “a ciência como teoria do real”. A realidade do real, o tornar-se realmente real, sendo um resultado, é um efeito, é sempre feito de um fazer, isto é, de um fazer, agora entendido como esforço e trabalho. A partir da emergência dos Tempos Modernos e de sua ciência, o “real” assume o sentido de “certo”. O real proposto em efeitos e resultados que fazem com que o vigente tenha alcançado uma estabilidade e assim venha ao encontro e de encontro (ibid. p. 44); o real se mostra então como ob-jeto (Gegen-stand). Vale lembrar que nem o pensamento medieval, nem o pensamento grego representam o vigente, como ob-jeto. “Chamamos aqui de objetidade o modo de vigência do real que, na Idade Moderna, aparece, como objeto” (ibid.).

Temos um elemento chave da frase esclarecido, na sua condição específica acampada pela ciência, expressa na objetificação e objetidade; “a ciência corresponde a esta regência objetivada do real à medida que, por sua atividade de teoria, ex-plora e dis-põe do real na objetidade” (ibid. p. 48). Resta agora deixar claro o elemento chave “teoria”. Já se percebe que é uma atividade que se distancia da theoria grega e medieval, ou seja, da contemplação na qual se dá a visão do perfil de alguma coisa de seu eidos; procede-se a um afastamento da “forma mais perfeita e completa do modo de ser e realizar-se do homem” (ibid. p. 45).

A tradução alemã de contemplatio[9] por Betrachtung, observação, “diz o latim tractare, tratar, empenhar-se, trabalhar” (ibid. p. 47). Assim a observação da ciência moderna é, de fato, uma uma observação, uma elaboração que visa apoderar-se e assegurar-se do real. Neste sentido a ciência é intervencionista e dis-põe do real a “pro-por-se num conjunto de operações e processamentos, isto é, numa sequência de causas aduzidas que se podem prever” (ibid. p. 48). A objetidade do real é assegurada, decorrendo desta objetidade “domínios de objetos que o tratamento científico pode, então, processar à vontade.” (ibid.)

A representação processadora, que assegura e garante todo e qualquer real em sua objetidade processável, constitui o traço fundamental da representação com que a ciência moderna corresponde ao real. O trabalho, que tudo decide e que a representação realiza em cada ciência, constitui a elaboração que processa o real e o ex-põe numa objetidade. Com isto, todo real se transforma, já de antemão, numa variedade de objetos para o asseguramento processador das pesquisas científicas. (HEIDEGGER, 2002b, p. 48)

A partir destes dois aforismos, “a ciência não pensa” e “a ciência é a teoria do real”, que tão bem caracterizam o fenômeno moderno da ciência, inteiramente enquadrado sob a metafísica da modernidade, a “representação”, podemos ensaiar produzir uma lista de aspectos que a delineiam ainda mais. Escolhemos como fonte principal para tal, o livro Contribuições à Filosofia (2014, p. 141-157), originalmente não previsto ser publicado, reunindo as meditações muito pessoais de Heidegger, no chamada período da “revirada” (Kehre), no caso escrito em 1938. Nos §§75-76, reúnem-se aforismos sobre a ciência, dos quais tratamos de alguns para completar nossa trajetória, focalizando-a especificamente os traços dominantes na ciência moderna.

No §75 (ibid. p. 141-142), Heidegger alerta para as duas maneiras de ser meditativo sobre “ciência”. A primeira faz, como aqui esboçamos, resgatando o passado, a episteme grega e a scientia medieval, não entrando “dentro de uma discussão do que pertence ao presente e seu alcance imediato” (ibid.). A segunda maneira, Heidegger pretende que seja àquela delineada nos seguintes aforismos, “que apreendem a ciência na sua constituição presente e atual” (ibid.). Sendo assim meditativa também sobre a ciência, esta outra maneira “tenta apreender a essência da ciência moderna em termos de empenhos que pertencem a esta essência” (ibid.).

A ciência ela mesma não é um conhecimento ou um saber (episteme), no sentido de fundamentar e preservar uma verdade essencial. A ciência é um maquinismo derivado de um saber. Ou seja, a abertura maquinacional de uma esfera de precisões dentro de uma eventualmente oculta – não devidamente questionada – região de uma verdade (“disciplinas”: “física”, “história”, “geografia”, etc.). O que é “cientificamente” conhecível é em cada caso dado de antemão por uma “verdade”, nunca apreensível pela ciência; uma verdade sobre a pré-delimitada região de entes. Entes como uma região se dão de modo antecipado para ciência, constituindo justamente um positum, e toda ciência é, portanto, ciência positiva.

Não há nunca e em parte alguma a ciência. Esta é apenas um título formal sobre uma fragmentação em disciplinas, ciências individuais e separadas. Considera-se a especialização como um progresso e jamais como um “fenômeno de decadência ou de degeneração ‘da’ ciência”. O fundamento desta divisão na “na entidade enquanto representatidade” (ibid.). Toda ciência explica o desconhecido na região de entes por algo conhecido e compreendido. A pesquisa provê as condições de explicação. O já compreendido determina antecipadamente a região da disciplina científica; o contexto de explicação é configurado e circunscrito.

Estabelecer um conhecido é realizado pela construção de explicações interconexas que requerem para sua possibilidade a completa amarração da pesquisa ao campo disciplinar particular. Esta amarração de ciências como mecanismos de interconexões de precisões é o rigor que a elas pertence. Toda ciência é assim rigorosa tanto quanto “positiva” e individualizada com respeito a uma região. O rigor de uma ciência desdobra-se e é completado nas maneiras de proceder e de operar, no “método”, garantindo o campo de objetos em cada caso em uma direção definitiva de explanação, que assegura que haverá sempre um “resultado”. Ênfase neste resultado da pesquisa, intensificando a prioritização da posição de proceder e de operar sobre o campo temático da região de entes. Todo apelo está no “resultado”. Toda ciência é rigorosa, mas nem toda é ciência exata.

Se “exatidão” significa obediência a procedimentos de mensuração e de cálculo, então: uma ciência pode ser exata só porque deve ser rigorosa. Uma ciência deve ser exata para permanecer rigorosa se seu campo temático é previamente lançado em bases de mensuração e cálculo, que garantam resultados. As ciências humanas por contraste devem permanecer inexatas para serem rigorosas. Toda ciência, como positiva e individual em seu rigor, é dependente da cognição de seu campo temático, dependente da pesquisa deste campo, dependente de empeiria e experimentum. Toda ciência é inquérito investigativo, mas nem toda ciência é experimental. Mensurar ciência (exata) deve ser experimental. A forma contrária da “ciência” experimental é a disciplina de “história”, que recolhe das “fontes”.

Com a consolidação crescente da essência técnico-maquinadora de todas as ciências, a diferença objetiva e metódica entre ciências naturais e humanas atenua-se mais e mais. Universidades como sítios para pesquisa e ensino científicos tornam-se meramente instituições operacionais. Filosofia não é nem contra e nem a favor da ciência mas a abandona a sua própria mania para sua própria utilidade, para assegurar sempre mais facilmente e rapidamente, resultados crescentemente mais úteis. Reconhecida a essência predeterminada da ciência moderna é possível esperar um progresso gigantesco das ciências no futuro, com toda exploração decorrente. A ciência persegue a meta de assegurar para o conhecimento o estado de total falta de necessidade, permanecendo a “mais moderna” na época da total falta de questionamento. A importante liberação vem somente do dar-se conta do conhecimento essencial que já se encontra no outro início; àquele novo início que revela onde nos equivocamos, onde a metafísica originou-se.

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Referências do artigo:

ARJAKOVSKY, P., FÉDIER, F. & FRANCE-LEONARD, H. (org.). Le Dictionnaire Martin Heidegger. Paris: CERF, 2013.

HEIDEGGER, Martin, Les problèmes fondamentaux de la phénoménologie. Paris: Gallimard, 1985.

______ Qu’appelle-t-on penser?, Paris: PUF, 1992.

______ Introdução à Metafísica. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999.

______ Seminários de Zollikon. Petrópolis: Vozes, 2001.

______ “A questão da técnica”, in Ensaios e Conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis: Vozes, 2002a.

______ “Ciência e pensamento do sentido”, in Ensaios e Conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis: Vozes, 2002b.

______ “O tempo da imagem no mundo”, in Caminhos de Floresta. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002c.

______ “O conceito de experiência em Hegel”, in Caminhos de Floresta. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002d.

______ A caminho da linguagem. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2003.

______ Nietzsche II. Trad. Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

______ Introdução à filosofia. Trad. Marco Antonio Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2008a.

______ Parmênides. Trad. Renato Kirchner. Petrópolis: Vozes, 2008b.

______ Platão: O Sofista. Trad. Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

______ Contribuições à Filosofia. Trad. Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Via Vérita, 2014.