E, em se tratando de causas, segundo Heidegger, a teoria aristotélica das quatro causas é um novo ponto de partida para problematização da técnica, enquanto instrumento. Importa, no entanto, clareza quanto ao sentido do termo “causa”, ao porque da determinação de “quatro” causas, e à univocidade do caráter causal das mesmas, determinando sua solidariedade.

O entendimento ordinário da noção de causa é de algo que “opera”, no sentido de “obter resultados”, “alcançar efeitos”. Segundo Aristóteles, quatro causas “operam” na constituição, por exemplo, de um cálice de prata: a causa materialis, o material empregado, a prata; a causa formalis, a forma dada à matéria, um cálice; a causa finalis, a finalidade que determinou esta conjunção de forma e de matéria, na constituição de um cálice “sacrificial”; e, a causa efficiens, aquela que efetiva o cálice pela arregimentação das demais causas, no caso, o artesão.

Deste modo, a causa efficiens, assume a primazia da causalidade, a ponto mesmo de encobrir a causa finalis. Este sentido predominante de operar, efetuar, da noção causa, não tem, no entanto, nada a ver com o que os gregos denominavam causa: “aquilo que responde por outra coisa”. Segundo Heidegger, as quatro causas aristotélicas seriam os modos, solidários entre si, do “ato do qual se responde”.

A causa materialis e a causa formalis se apresentam como co-responsáveis imediatas pela forma material e tangível do cálice de prata. Porém, cabe à causa finalis a responsabilidade pela definição do sentido do cálice, de sua razão de ser, antes e depois de sua constituição.

Quanto à causa efficiens, Aristóteles indicava para esta causa a responsabilidade pela presença e disponibilidade do cálice constituído, para aquela finalidade. O artesão considera e reúne, a seu modo, as três causas mencionadas no “ato do qual se responde”. O artesão é a causa efficiens, enquanto co-responsável pela revelação do cálice, pela emergência no não-oculto de um cálice configurado de certa matéria e forma, segundo uma determinada finalidade.

Assim, no utensílio, que se dá e propõe no culto, regem e vigem quatro modos de dever e responder. Entre si são diferentes, embora pertençam um ao outro na unidade de uma coerência. O que os une antecipadamente? Em que se joga o jogo de articulação dos quatro modos de responder e dever? De onde provém a unidade das quatro causas? Pensando de maneira grega, o que significa responder e dever?1

As quatro causas, ou quatro modos, respondem pelo propor-se do cálice sacrificial. “Dar-se e propor-se designam a vigência de algo que está em vigor.”2 Deste modo, os quatro modos de responder e dever, de aitia, deixam que algo venha a viger; eles são um deixar-viger, evocando assim a experiência grega de causalidade.

Os quatro modos, deixando chegar à vigência o que ainda não vige, são regidos e atravessados, de maneira uniforme, por uma condução que conduz o vigente a aparecer. Segundo Platão: “Todo deixar-viger o que passa e procede do não-vigente para a vigência é poiesis, é produção”3.


SÍNTESE

1) As quatro causas aristotélicas, aplicadas na abordagem da instrumentalidade da técnica, entendida sob o ponto de vista da causalidade, são:

  • causa materialis: tomemos por exemplo um cálice de prata utilizado em um ritual: a prata enquanto matéria, material que entra em sua composição, é a causa materialis; a prata enquanto matéria determinada, “responde” pelo cálice, que deve a ela aquilo de que consta e é feito; mas a prata não responde pela forma de um cálice, nem pela sua utilidade sacrificial e nem pela sua confecção como cálice sacrificial de prata.
  • causa formalis: o cálice sacrificial de prata deve à causa formalis a forma ou figura que o define como cálice e não como um broche ou anel;
  • causa formalis responde pelo perfil (eidos) de cálice do cálice sacrifical de prata.
  • causa finalis: no exemplo do cálice sacrificial, a circunscrição de sua utilidade é definida por um terceiro modo: a causa finalis, que o estabelece na esfera do sagrado; “A circunscrição finaliza o utensílio. Com este fim, porém o utensílio não termina ou deixa de ser, mas começa a ser o que será depois de pronto. O grego telos indica esta finalização no sentido de levar a plenitude.
  • causa efficiens: a causa efficiens não é como se costuma pensar aquilo que faz do cálice o “efeito de uma atividade”; “A doutrina de Aristóteles não conhece uma causa chamada eficiente e nem usa a palavra grega que lhe corresponde”; a causa efficiens em seu sentido grego, é aquela que “reflete e recolhe numa unidade os três modos mencionados de responder e dever”; refletir, recolher = legein, logos; apophainestai = fazer aparecer; a causa efficiens é a própria reflexão daquele que reúne as demais causas no “fato e modo em que aparecem e entram no jogo de pro-dução do cálice sacrificial”.

3) Geralmente entende-se “causa como o que é eficiente”, no sentido de alcançar resultados e efeitos. O sentido literal da “causa efficiens” prevalece como sentido único das causas. “Causa, casus provém do verbo cadere, cair. Diz aquilo que faz com que algo caia desta ou daquela maneira num resultado.”

4) Doutrina das quatro causas remonta à Aristóteles.

5) A concepção moderna de causalidade não tem nada a ver com a grega, que se afasta de qualquer associação com eficiência ou eficácia.

6) O que em alemão se denomina Ursache, causa, os gregos denominavam aition, “aquilo pelo que um outro responde e deve”. “As quatro causas são os quatro modos, coerentes entre si, de responder e dever”.


  1. HEIDEGGER, Martin. Ensaios e Conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel e Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2002, pág. 15 

  2. ibid, pág. 15 

  3. ibid, pág. 16 

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