Toda a argumentação, construída até aqui, sustenta esta tese: existe um movimento de natureza circular e cíclica na instituição-constituição da tecnologia da informação, do meio técnico-científico-informacional, e, por conseguinte, do dar-se e propor-se da informática. Este movimento se reproduz sem maiores obstáculos, dado que o engenho e o dar-se e propor-se da informática são consubstanciais com o meio, segundo as mesmas propriedades (técnica, científica e informacional), ao mesmo tempo, que se apresentam como constituições técnicas-científicas-informacionais que emergem no processo da informatização, no meio da Modernidade1), ganhando vigor e presença no século XX, especialmente após a última Grande Guerra.
Como mutuários de uma mesma conjunção de valores, de ideais e de visão de mundo e de homem, engenho, meio e dar-se e propor-se da informática se instituem e se constituem, compartilhando as mesmas condições de reprodução e de disseminação, especialmente de seus efeitos e de seus resultados. Deste modo, o meio se consolida e, devido à própria substância técnica-científica-informacional, se auto-engendra e se auto-organiza, provendo sempre novos objetos com novas facetas, novos arranjos, novas gerações, que o realimentam e o reproduzem.
É a experiência de um paradoxo no uso do engenho, que chama a atenção para essa consubstancialidade do engenho, do meio e do dar-se e propor-se da informática: existe uma total incapacidade do engenho de representação, de representar este mesmo meio do qual retira sua substância.
Com efeito, os objetos e fenômenos deste meio, constituídos sob a estrutura epistêmica deste mesmo meio, e qualificados sob as rubricas técnica, científica e informacional, só admitem representações quantitativas e matemáticas, construídas a partir de um conjunto de dados simbólicos, cuja definição está submetida aos termos, noções e conceitos impostos pelo próprio meio. Ou seja, os princípios e estruturas de conhecimento2) do engenho estão intimamente comprometidos com o meio do qual é produto e produtor, no dar-se e propor-se da informática.
Esta caracterização do engenho como constituído por este meio, e, ao mesmo tempo, no dar-se e propor-se da informática, como constituinte deste meio, enfim, ambos como constituições técnicas-científicas-informacionais, exige um exame de sua morfogênese no e pelo meio. É isto que desenvolve o capítulo seguinte, examinando o processo de informatização responsável pela gênese e sustentação do engenho, e do meio técnico-científico-informacional, no dar-se e propor-se da informática.
O que importa, de imediato, é a constatação que a ontogenia do dar-se e propor-se da informática, na coalescência dos demais modos de responder e dever refletidos e recolhidos pelo engenho operado pelo homem, se dá na total imersão e interação com um meio técnico-científico-informacional, e, por conseguinte, se instrui e se dinamiza segundo esta simbiose meio-engenho-informatização-meio, que só pode produzir e reproduzir objetos consubstanciais. Como afirma brilhantemente Ladrière3:
Portanto, em nossa existência concreta e, a partir do funcionamento mesmo dos objetos técnicos, há indução de uma dualidade do vivido e do construído; existe mesmo (o que é pior) substituição do vivido pelo construído. Quer dizer: há uma extensão crescente do campo da objetividade. Ora, o espírito da construção é o domínio, um saber-fazer fundado num conhecimento preciso das estruturas e dos funcionamentos. No caso da máquina o domínio se mostra particularmente evidente. Sabemos exatamente como se constitui sua estrutura, pois conhecemos os princípios da sua construção. E sabemos como ela funciona, pois conhecemos em função de que performances a serem realizadas ela foi construída.
Resta agora tentar compreender a informatização enquanto processo que antecede a informática e não decorre da mesma, como se supõe em geral. A informatização de fato culmina uma ação de forças ou de vetores como a “matematização” e a “logicização”, que “com-põem” este meio, e “con-formam” o engenho.
A informatização é o episódio mais recente da história do ser. Como afirma Heidegger:
Aquilo que é hoje em dia, é marcado pela dominação da essência da técnica moderna, dominação que, em todos os domínios da vida, já se manifesta por características com nome múltiplos, tais como funcionalização, perfeição, automação, burocratização, informação. (HEIDEGGER, Martin. Questions I-II. Paris: Gallimard, 1968, pág. 286)
O termo “técnica” deriva do grego technon. Este designa o que pertence à techne. Este termo tem, desde a aurora da antiga língua grega, o mesmo significado que episteme – quer dizer vigiar uma coisa, compreende-la. […]
Dito de modo elíptico e sucinto: techne não é um conceito do fazer, mas um conceito do saber. techne e portanto técnica querem dizer que algo é com-posto (gestellt) no manifesto, acessível e o disponível, e é pro-posto enquanto presente em sua posição (Stand). Ora na medida onde reina na técnica o princípio do saber, ela-mesma fornece a partir dela mesma a possibilidade e a exigência de uma configuração particular do seu próprio saber ao mesmo tempo em que se oferece e se desenvolve uma ciência que lhe corresponde. Isto é um acontecimento, e este acontecimento advém apenas uma só e única vez no curso de toda a história da humanidade: no interior da história do ocidente europeu, no início ou melhor como início desta época que se denomina os Tempos Modernos. (HEIDEGGER, Martin. Língua de Tradição e Língua Técnica. Tradução do francês, Mário Botas. Lisboa: Vega, 1995, modificada e com grifo meu ↩
Isto significa nada menos que: a técnica é codeterminante no conhecer. Isto só pode ser porque seu caráter mais próprio possui ele mesmo algo de um traço de conhecimento. (HEIDEGGER, Martin. Língua de Tradição e Língua Técnica. Tradução do francês, Mário Botas. Lisboa: Vega, 1995 ↩
LADRIÈRE, Jean. Ética e Pensamento Científico: a abordagem filosófica do problema bioético. São Paulo: Editora Letras & Letras, 1994, pág. 28 ↩