de Castro – “Meio” em Vidal de la Blache

A ideia de meio para Vidal tem o mesmo caráter sintético e circular da de organismo. Sintético, porque corresponde à fusão de forças de origens diversas que agem simultaneamente lhe dando uma forma. Circular, porque esta forma, que aparece como uma totalidade (a paisagem, p.ex.) é por sua vez, a reunião de diversos elementos em conexão, por sua vez causa e efeito uns dos outros. Dito de outra forma, se trata do resultado de um campo de ação e de tensão particular que é o objeto mesmo do conhecimento. Este esquema, o mesmo que Bergson descreve como o Um (totalidade), não é função da reunião, mas de tensão permanente, segundo o exemplo da luz do sódio.[[GOMES, Paulo César da Costa. Les composantes de l’epistemologie vidalienne. Mimeo, Université de Paris IV, UER Géographie, sem data.]]

Segundo o geógrafo Paulo César Gomes, este campo de ação (o meio), que é o domínio da Geografia, se define no seu modo de ser [[O “espirito geográfico”, ou o “ponto de vista”, o “angulo” ou o “método geográfico”, expressões frequentemente usadas pelos vidalianos, pressupunham “a ideia de unidade terrestre” (ou “princípio de conexidade” como preferia Jean Brunhes), ou como se referia Vidal : “aquilo que Platão chama de espírito sinóptico”. O trabalho de analise deveria se concentrar sobre a lugar, ou a díade lugar-meio, sempre à luz desta visão holística implícita no prefixo “geo” do nome da disciplina.]]; pois seu fundamento ontológico não é um simples artifício da ciência, mas uma manifestação real e concreta, que pode se tornar objeto de uma curiosidade verdadeiramente científica. O que explica, de certa maneira, a prioridade originalmente dada pela Geografia, ao estudo do meio, o movimento de seus elementos, suas funções e limites. Com efeito, uma notável tentativa de reconstituir um conjunto, um todo organizado de ser-meio, enquanto expressão de uma essência invisível, em movimento no domínio do visível. Em termos metafísicos, o entendimento da ação concreta do Céu sobre a Terra, desenhando sua fisionomia; ação, em grande parte, regida por um ser central, o homem, neste plano de manifestação do Ser.

Para Vidal de La Blache, “o homem faz parte desta cadeia (que une as coisas e os seres) e nas suas relações com o que o cerca, ele é ao mesmo tempo ativo e passivo, sem que seja fácil determinar na maior parte dos casos, até que ponto ele seja um ou outro”. E, ainda mais, “a ação do homem tira sua principal potência dos auxiliares que ela mobiliza no mundo vivente: plantas de cultura, animais domésticos; pois põe em movimento forças contidas, que encontram graças a ele (o homem) o campo livre e que agem”[[apud GOMES, Paulo César da Costa. Les composantes de l’epistemologie vidalienne. Mimeo, Université de Paris IV, UER Géographie, sem data.]].

Gomes afirma que Vidal reconhece que existem limitações evidentes na capacidade de adaptação e transformação do homem em relação às condições do meio. A força humana submetida ao quadro das condições objetivas do meio — luta aberta entre cultura e natureza, da qual a civilização resume em si a tensão. A Geografia se oferece como uma disciplina capaz de inventariar os resultados desta tensão, em termos da organização crescente do espaço do homem.

No pensamento de Vidal de La Blache, segundo Gomes, se manifestam em relação a ideia de meio, os princípios aristotélicos de ato e de potência, consagrados na Idade Média. Princípios que podem ser colocados em perfeita analogia, respectivamente, com a Ação humana e a Natureza.

Reconhecendo que o estudo geográfico passa pelo exame combinado dos fatos humanos e dos fatos físicos, Vidal de La Blache, afirma, por exemplo, sobre a cidade, que na “hierarquia de formas de grupamento, a cidade representa em um grau eminente a emancipação do meio, uma tomada mais forte, mais ampla, do homem sobre a terra. A natureza, sem dúvida, preparou os sítios, mas foi o homem quem criou o organismo” [[apud BERGEVIN, Jean. Déterminisme et géographie. Hérodote, Strabon, Albert le Grand et Sebastian Münster. Sainte-Foy, Les Presses de l’Université Laval, 1992.]]. Ou seja, o meio se define em função da obra humana que o transforma.

Em outra colocação, certamente com raízes no Romantismo, Vidal afirma: “deve-se partir desta ideia que um sítio é um reservatório onde dormem energias cuja natureza depositou o germe, mas cujo emprego depende do homem”[[apud GOMES, Paulo César da Costa. Les composantes de l’epistemologie vidalienne. Mimeo, Université de Paris IV, UER Géographie, sem data.]]. Em sua obra póstuma, editada em 1921, por seu genro E. de Martonne, Vidal de La Blache parece, em um primeiro momento, reduzir sua visão da ideia de meio às condições físicas (como clima, solo, geomorfologia): “os fatos da Geografia humana ligam-se a um conjunto terrestre e apenas por este são explicáveis; relacionam-se com o meio que, em cada lugar da Terra, resulta da combinação das condições físicas ”[[LA BLACHE, Vidal de. Princípios de Geografia Humana. Lisboa: Cosmos, 1954, p. 30.]]. Entretanto, mais adiante neste mesmo livro, se apropriando das ideias da emergente ciência da ecologia, que se manifestavam àquela época, Vidal afirma:

Tal é a lição da ecologia , que devemos às investigações da Geografia botânica: Ecologia, quer dizer, segundo as próprias palavras do criador deste nome (Haeckel), a ciência que estuda ‘as relações mútuas de todos os organismos que vivem num único e mesmo lugar, e a sua adaptação ao meio que os rodeia’. […] Mas se refletirmos em tudo aquilo que implica esta palavra meio ou environnement, segundo a expressão inglesa; se cogitarmos nos fios ignorados de que é tecida a teia que nos envolve, qual o organismo vivo capaz de subtrair-se-lhe?

Em suma, o que ressalta nitidamente destas investigações é uma ideia essencialmente geográfica: a de um meio compósito, dotado de uma potência tal que pode agrupar, e manter juntamente, seres heterogêneos em combinação e correlação recíproca. Esta noção parece ser a própria lei que rege a geografia dos seres vivos. Cada região representa um domínio, onde se reuniram artificialmente seres díspares, que aí se adaptaram a uma vida em comum. [[LA BLACHE, Vidal de. Princípios de Geografia Humana. Lisboa: Cosmos, 1954, p. 34.]]

As colocações de Vidal de La Blache sobre a relação homem-meio receberam de Lucien Febvre uma conotação filosófica, e foram cunhadas sob a ideia de possibilismo, geralmente apresentado como uma reação, ou pelo menos uma antítese ao que se entendia pelo título de determinismo ambiental. Ao articular os polos homem e meio, na constituição de uma paisagem ou de uma região, Vidal efetivamente valoriza a ação humana, introduzindo na díade homem-meio a ideia de grau de liberdade do homem [[A ação humana está em condições de se realizar graças a diversidade de elementos do meio, ou de possibilidades, que ela pode tirar partido. A liberdade do homem de organizar a superfície terrestre em função de suas necessidades e aspirações está submetida evidentemente às limitações impostas pelo meio. [BERDOULAY, Vincent. La formation de l’école française de géographie (1870-1914). Paris: CTHS, 1981.]]].

Apesar de sua motivação anti-mecanicista, o possibilismo é, de certa forma, uma nuança do determinismo, ao matizar a dependência face ao “meio”, sem eliminá-la. “O livre arbítrio que esta lógica se esforça em estabelecer ainda resta confinada no interior de um campo limitado de possibilidades”, segundo Jean Bergevin [[BERGEVIN, Jean. Déterminisme et géographie. Hérodote, Strabon, Albert le Grand et Sebastian Münster. Sainte-Foy, Les Presses de l’Université Laval, 1992.]]. Entretanto se nos elevarmos à dimensão metafísica que o possibilismo oferece, confirmamos a visão tradicional platônica-aristotélica, de que o ser prescreve as condições de sua manifestação, sendo estas uma especificação, ou especialização das condições gerais do estado de manifestação visado; sua manifestação, portanto, deve ser um desenvolvimento das possibilidades contidas naquele estado, ou, mais objetivamente, naquele meio [[Mas, ao mesmo tempo, “as influencias do meio não se revelam para nós, a não ser através de uma massa de contingências históricas que as encobrem” [apud BERDOULAY, Vincent. La formation de l’école française de géographie (1870-1914). Paris: CTHS, 1981.]. É surpreendente a semelhança desta colocação de Vidal de La Blache, com a ideia de D’Arcy Thompson, apresentada anteriormente, de que uma forma qualquer representa um “diagrama de forças” do meio onde se insere.]].

A noção vidaliana de meio, construída em articulação com a noção de sociedade que se elaborava àquela mesma época, parece introduzir uma dinâmica promissora na Flatland, estruturada de forma estática pelas dois eixos dimensionais, Sociedade-Natureza, que orientaram o processo de purificação da Razão Moderna, na visão de Bruno Latour.