de Castro – A noção de “meio” na Geografia

A Geografia parece se situar em uma posição privilegiada[[Na história do Graal, existe uma referência a um “assento perigoso” na Távola Redonda, um lugar privilegiado, porém de imensos desafios para seu ocupante; um lugar a ser ocupado pelo melhor de todos os cavaleiros. Com efeito, os lugares privilegiados são por natureza os mais difíceis de se assentar e se manter…]], para a consecução do empreendimento epistemológico proposto por Bruno Latour. Reunindo dois eixos de investigação, o Físico e o Humano, ou em outros termos, Natureza e Sociedade, segundo a ótica da organização do espaço do ser humano, a Geografia se encontra, por princípio, na encruzilhada destes eixos. Mas, sob a exigência de se deslocar de forma ortogonal à Flatland que estes eixos definem. Um deslocamento vertical que possibilite a tão aspirada visão, proposta por um de seus fundadores, Ptolomeu[[Ptolomeu estabeleceu duas concepções maiores na construção da «geo-grafia», enquanto uma grafia da Terra. Primeiro o “ponto de distanciamento”, que busca uma “visão de lugar nenhum”, uma combinação de elevação vertical com interiorização, que permite a multiplicação dos pontos de vista sob a forma de olhares que descobrem a superfície da terra., o ecúmeno. Segundo, a racionalidade geométrica da grade ortogonal, com uma função epistemológica, capaz de estabelecer “um índice de ordem que escapa às limitações físicas assim como aos mecanismos mais gerais da morfogênese”. [JACOB, Christian (1992), L’empire des cartes. Approche théorique de la cartographie à travers l’histoire. Paris, Albin Michel].]]. Uma visão da relação Sociedade-Natureza, que assimile o todo e as partes, o uno e o múltiplo, o global e o local, segundo uma razão contraditória, irredutível a uma lógica conjuntista , condenada por Castoriadis[[CASTORIADIS, C. (1978), Les Carrefours du Labyrinthe. Paris, Seuil.]], mas, de fato, alinhada com um reconhecimento da antiga lógica regida pela aceitação de uma coincidentia oppositorum.

Para tal cometimento, é preciso se dar conta daquilo que o geógrafo John Pickles[[PICKLES, John (1985), Phenomenology, Science and Geography. Cambridge, Cambridge University Press.]] muito bem coloca, com base em uma fórmula de Heidegger, se referindo aos possíveis caminhos para um empreendimento gnosiológico desta natureza: “em toda disciplina científica e em toda perspectiva teórica certos conceitos básicos determinam a maneira pela qual obtemos uma compreensão inicial da matéria onde subjazem todos os objetos que uma ciência toma por tema. Toda investigação positiva é guiada por esta compreensão, ainda que ela seja geralmente pressuposta” (p.15).

Segundo Pickles, apenas com base em tais conceitos e tais perspectivas os fatos tem o significado que tem, e, em uma situação ideal, assim podem geógrafos, sociólogos, antropólogos, e outros cientistas, constituir suas disciplinas. Somente pelo esclarecimento destes conceitos básicos, e pelo esforço de torná-los transparentes, as ciências podem se tornar genuinamente enraizadas. Nas palavras do próprio Heidegger:

[…] a investigação científica fixa por alto e não sem ingenuidade um primeiro recorte dos domínios a estudar. A elaboração de um domínio em suas estruturas fundamentais é de algum modo já operada pela experiência e pela explicitação pré-científicas do setor de ser no qual o domínio a estudar encontra ele mesmo sua delimitação. Os “conceitos de base” assim emergidos ficam então adquiridos, é sobre eles que se guia a primeira detecção concreta deste domínio. Quanto a saber se a investigação deve por conseguinte todo o seu peso a esta positividade, digamos que ela não progride mais quando ela acumula resultados e os reúne nos “manuais”, do que quando, quase sempre em reação a uma tal inflação de conhecimentos sobre a questão, seu progresso verdadeiro consiste a por em questão o que constitui em seu fundo cada um dos domínios visados. O verdadeiro “movimento” científico se realiza quando as ciências submetem seus conceitos de base a uma revisão mais ou menos radical e que não lhe é transparente. Até que ponto ela é capaz de uma crise de seus conceitos de base, eis o que determina o nível de uma ciência.[[HEIDEGGER, Martin (1986), Être et temps. Paris, Gallimard, p.33]]

Para Pickles, a tradição geográfica tem geralmente assumido uma postura, comparável a de Hartshorne[[HARTSHORNE, Richard (1939/1977), The Nature of Geography. Westport, Greenwood Press.]], que considera que a reflexão epistemológica e metodológica[[Na interpretação que Pickles faz da posição de Hartshorne: “a meta da metodologia não é defender uma posição uma vez tomada, nem projetar uma nova orientação, mas em vez disto clarificar nossa compreensão mútua do que herdamos através de uma cuidadosa e literal exegese textual”.]], assim como a determinação da natureza, escopo e finalidade da Geografia, deveriam ser encaradas como um problema de pesquisa empírica, e, portanto, “obtidas através da descrição confiável da Geografia como era vista através dos olhos dos geógrafos do passado, assim como do presente”.

Um esforço que só serve para recuperar os lugares comuns e o discurso oficial da disciplina, segundo Pickles. Ou seja, não torna claro o discurso geográfico, por não problematizar seus conceitos básicos nem tornar transparentes aqueles que são assumidos como intuitivos. Uma abordagem que busca, portanto, reconstruir/reproduzir uma lógica geográfica, privilegiando a investigação de sua prática, como eixo epistemológico/metodológico para seu desenvolvimento enquanto ciência.

Neste sentido, entendemos como sendo da maior relevância o eterno retorno aos conceitos geográficos, especialmente diante das transformações técnicas, científicas, sociais, políticas, culturais, econômicas, e de todos os tipos, pelas quais vem passando a Flatland Sociedade-Natureza. Transformações que efetivamente se manifestam em suas múltiplas dimensões, além deste plano bidimensional, e que, desta maneira, só podem se apresentar ao olhar de um geógrafo, devidamente posicionado face a esta Flatland , e em progressiva ascensão crítica, segundo uma ortogonalidade ímpar a este plano.

A noção e o termo meio se encontram entre os conceitos e designações que os geógrafos, até mesmo de forma subliminar, se baseiam na construção de seus discursos e no exercício de sua racionalidade. Com efeito, a ideia de meio, por sua imanência ao «geo-grafar», se naturalizou e se banalizou de tal forma, que perdeu sua força significativa de conceito transversal. Tomando o trabalho do «geo-grafo», como aquele indicado pela composição dos fonemas do próprio vocábulo que o designa, podemos constatar que este trabalho pretende ser uma descrição do mundo, do meio, ou melhor, do lugar-entorno de existências humanas, onde eventualmente o próprio geógrafo existe. Tradicionalmente este trabalho tem sido voltado para uma arrolamento e descrição de elementos deste meio (casas, vegetação, pessoas, ocupações, montanhas, rios, estradas, etc.), e para um registro de diferentes ocorrências e transações destes elementos em ou entre si mesmos. O grande desafio é: como manter a riqueza da ideia de meio, especialmente em sua articulação com um lugar qualquer por ele abrangido, formando uma totalidade, em um simples exercício geográfico de enumeração e descrição de elementos do meio?

Não pretendemos responder integralmente a esta questão, pelo menos não aqui, mas nos propomos resgatar algumas formulações da ideia de meio, ao longo da história do pensamento geográfico moderno. Não se trata, de maneira nenhuma, de uma tentativa de resumo do monumental trabalho de Clarence Glacken[[GLACKEN, Clarence J. (1967), Traces on the Rhodian Shore. Nature and Culture in Western Thought from Ancient Times to the End of the Eighteenth Century. Berkeley, University of California Press.]], que seria uma tarefa hercúlea e de certo modo impraticável. Tanto mais, porque as questões originais colocadas por Glacken, em sua monumental obra, em sendo essenciais, tecem um enorme pano de fundo para nossa investigação, sobre o meio técnico-científico-informacional .

Escolhemos para este breve resgate da noção de meio geográfico apenas uma personalidade notável, Vidal de La Blache, cujo pensamento geográfico é considerado como fundador[[Entretanto, qualquer tentativa de compreensão dos fundamentos epistemológicos da geografia vidaliana, se esbarra em uma dificuldade maior: a quase ausência de referencias, em sua obra, a filósofos ou outros pensadores da problemática da pesquisa científica. [BERDOULAY, Vincent (1981), La formation de l’école française de géographie (1870-1914). Paris, CTHS].]] da escola francesa de Geografia[[Ibid. e BUTTIMER, Anne (1980), Sociedad y Medio en la Tradición Geográfica. Barcelona, Oikos-tau.]]. Nossa opção se deve a uma questão muito simples, talvez mesmo trivial, que é o fato de se encontrar na base do pensamento de La Blache um tratamento formal e profundo do termo milieu, que, embora equivalente ao francês environnement, guarda outras conotações que o termo inglês não oferece.