Bruno Latour1 desenvolve uma análise sobre a proliferação do que denomina híbridos, a partir da Constituição que formalizou a modernidade. Latour nos convida à reflexão sobre estes objetos que se situam em um meio, compreendido entre dois extremos, Sociedade e Natureza; objetos que as ciências humanas e naturais tentam tratar de forma altamente purificada, segundo a perspectiva singular de cada ciência e os princípios da Razão Moderna .

A modernidade é muitas vezes definida através do humanismo, seja para saudar o nascimento do homem, seja para anunciar a sua morte. […] Esquece o nascimento conjunto da não-humanidade das coisas, dos objetos e das bestas, e o nascimento, tão estranho quanto o primeiro, de um Deus suprimido, fora do jogo. A modernidade decorre da criação conjunta dos três, e depois da recuperação deste nascimento conjunto e do tratamento separado das três comunidades, enquanto que embaixo, os híbridos continuavam a multiplicar-se como uma consequência direta deste tratamento em separado. É esta dupla separação que precisamos reconstituir, entre o que está acima e o que está abaixo, de um lado, entre os humanos e os não-humanos, de outro.2

Tomando como ponto de partida o livro de Steven Shappin e Simon Shaffer3, Latour descreve a Constituição da modernidade, que define os humanos e os não-humanos, suas propriedades e suas relações, suas competências e seus agrupamentos, ou seja, o estatuto da coisa-em-si, conforme formulado, desde o século XVII, por Robert Boyle, e o estatuto do homem-entre-si, do cidadão, ditado por Thomas Hobbes.

Com o trabalho de purificação, de cada um destes polos, que se sucedeu, resultando nas ciências naturais e nas ciências humanas contemporâneas, a Constituição ganhou concretude, explicando recursivamente o que era objetivado por estas ciências, mas esquecendo tudo que estava no meio destes extremos, coisificados. Os híbridos, os mistos de Sociedade-Natureza abandonados ao limbo4 , são quase tudo; formam “o Império do Centro, tão vasto quanto a China, tão desconhecido quanto ela”.

Para Latour, a amplitude da mobilização dos coletivos multiplicou “os híbridos a ponto de tornar impossível, para o quadro constitucional que simultaneamente nega e permite sua existência, mantê-los em seus lugares. A Constituição moderna desabou sobre seu próprio peso, afogada pelos mistos cuja experimentação ela permitia, uma vez que ela dissimulava as consequências desta experimentação no fabrico da sociedade. O terceiro estado se tornou numeroso de mais para se sentir fielmente representado pela ordem dos objetos e dos sujeitos.

Latour propõe para acolher estes objetos híbridos, a formalização de um espaço que não é mais o da Flatland de Abbott5, neste caso definida pelas duas dimensões (Sociedade-Natureza) da Constituição da modernidade, uma vez que preenche uma terceira dimensão, que justamente esta Constituição pretendia reduzir ao seu plano, através da purificação. Ou seja, não se trata de subverter as práticas da purificação, mas acrescê-las das práticas da mediação; estas últimas, em se realizando pari passu com as primeiras, permitem a elevação do plano da Flatland, imposta pela Razão Moderna , em busca da construção de uma epistemologia capaz de abarcar os híbridos.

Para melhor entender a proposta de Latour, devemos acompanhá-lo em sua análise sobre as três grandes estratégias que as grandes filosofias modernizadoras tentaram adotar, para absorver ao mesmo tempo a Constituição moderna e os híbridos: a primeira estratégia procurou realizar a grande separação entre os objetos e os sujeitos; a segunda, sob o nome de vertente semiótica , se preocupou com o a terceira dimensão, o meio, abandonando os extremos; a terceira isolou o pensamento do Ser do pensamento dos entes.

Para Latour, é com o kantismo que a Constituição recebe sua formulação canônica: o que era simples distinção, uma frágil separação de dois artifícios epistemológicos, Sociedade e Natureza, transforma-se em uma separação total, uma revolução copernicana. As coisas-em-si tornam-se inacessíveis enquanto que, na outra dimensão o sujeito transcendentaliza-se, distanciando-se infinitamente do mundo. O conhecimento só é possível no ponto mediano, o ponto dos fenômenos, através de uma aplicação das duas formas puras: da coisa-em-si e do sujeito. Os híbridos ainda tem sua cidadania garantida, mas apenas enquanto mistura das formas puras, em proporções estabelecidas segundo uma arquitetura de categorias de pensamento. As mediações para esta apreensão do fenômeno, nada mais fazem do que traduzir as formas puras, as únicas efetivamente reconhecíveis.

A dialética hegeliana, ao acreditar que abolia a separação do kantismo entre coisa-em-si e sujeito, aumenta ainda mais o abismo que separa o polo objeto, do polo sujeito, imaginando que possa superar e anular, ao final de seu exercício, esta crise. “A dialética só fala de mediações, contudo as inumeráveis mediações com que povoa sua história grandiosa são apenas intermediários que transmitem as qualidades ontológicas puras, seja do espírito em sua versão de direita, seja da matéria em sua versão de esquerda.”

Mas, como afirma Latour, os objetos híbridos continuavam a proliferar, monstros da primeira, da segunda, da terceira revolução industrial, fatos socializados e humanos que se tornaram segunda, terceira e quarta natureza. Intensifica-se cada vez mais a tensão entre as duas dimensões da Constituição moderna, a medida que se elaboram alternativas que nada mais fazem do que tentar enquadrar e assimilar os híbridos, em sua proliferação vertiginosa, segundo exercícios epistemológicos decorrentes, em última análise do kantismo. A Constituição moderna alimentava a ilusão de incomensurabilidade entre o mundo dos sujeitos e dos objetos, ao mesmo tempo, que procurava, diante da avalanche de híbridos, anular esta falta de medida comum entre os dois mundos, mensurando humanos e coisas em conjunto com as mesmas medidas; e, assim, multiplicando, sob o nome de intermediários, os mediadores.

A segunda estratégia, das vertentes semióticas, ao invés de concentrar-se sobre os extremos do trabalho de purificação, se concentra sobre uma de suas mediações, a linguagem. Seja como semiótica, semiologia ou linguística, ou mais recentemente como um ramo das ciências cognitivas, esta abordagem visa tornar o discurso um mediador independente tanto da natureza quanto da sociedade, e não um simples intermediário, transparente, que colocaria o sujeito humano em contato com o mundo natural.

Ao tentar pôr entre parênteses a questão da referência ao mundo natural e a questão da identidade dos sujeitos pensantes e falantes, esta estratégia entendeu que poderia autonomizar o sentido, compreendendo os híbridos, através das filosofias da linguagem, do discurso ou do texto. A linguagem torna-se, em si, sua própria lei e seu próprio mundo. “Sua grandeza foi a de desenvolver, abrigada da tirania tanto do referente quanto do sujeito falante, os conceitos que dão sua dignidade aos mediadores, que deixam de ser simples intermediários ou simples veículos transportando o sentido da natureza aos locutores instalados no discurso.”

Segundo Latour o ponto fraco desta estratégia foi a de ter tornado mais difíceis as conexões entre um discurso autônomo e a natureza ou o sujeito/sociedade que ela havia deixado intactos, entre parênteses.

É difícil, realmente, imaginar durante um longo período de tempo que somos um texto que escreve a si mesmo, um discurso que se fala sozinho, um jogo de significante sem significado. Difícil reduzir todo o cosmos a uma grande narrativa, a física das partículas subatômicas a um texto, todas as estruturas sociais a um discurso. O império dos signos não durou muito mais que o de Alexandre e foi, ele também, desmembrado entre seus generais.6

A terceira e última estratégia, reconhecida por Bruno Latour, revela a importância do pensamento da diferença entre o Ser e os entes, como um bom recurso epistemológico para abrigar os híbridos. Ao desconstruir a metafísica, Heidegger traça o ponto central onde tudo está contido, distante tanto dos sujeitos quanto dos objetos. Mas…

Quem esqueceu o Ser? Ninguém, nunca, pois caso contrário a natureza seria realmente ‘vista como um estoque’. Olhem em volta: os objetos científicos circulam simultaneamente enquanto sujeitos, objetos e discurso. As redes estão preenchidas de ser. E as máquinas estão carregadas de sujeitos e de coletivos. Como é que o ente poderia perder sua continuidade, sua diferença, sua incompletude, sua marca? Ninguém jamais teve tal poder, senão precisaríamos imaginar que fomos verdadeiramente modernos.7

Latour conclui que os modernos desenvolveram quatro repertórios diferentes, que acreditavam ser incompatíveis, para acomodar a proliferação dos híbridos: o da naturalização, o da sociologização, o da colocação em discurso e, enfim, o do esquecimento do Ser.

O primeiro repertório trata da realidade exterior de uma natureza da qual não somos mestres, que existe fora de nós e que não conta nem com nossas paixões nem com nosso desejo, ainda que sejamos capazes de mobilizá-la e de construí-la. O segundo repertório trata do laço social, daquilo que liga os humanos entre si, das paixões e desejos que nos agitam, das forças personificadas que estruturam a sociedade – a qual nos ultrapassa, ainda que seja construída por nós. O terceiro trata da significação e do sentido, dos actantes que compõem as histórias que contamos uns aos outros, das provas que eles enfrentam, das aventuras que atravessam, dos tropos e dos gêneros que os organizam, das grandes narrativas que nos dominam infinitamente, ainda que sejam simultaneamente texto e discurso. O quarto, enfim, fala do Ser, e desconstrói aquilo de que nos esquecemos quando nos preocupamos apenas com o ente, ainda que a diferença do Ser esteja distribuída pelos entes, co-extensivos à sua própria existência.8

A partir deste reconhecimento de nossa submissão a scripts aparentemente autônomos, ao operar o que Latour denomina uma “contra-revolução copernicana”, ao empreender o esforço de se elevar acima da Flatland Sociedade-Natureza, criando pela imaginação criativa a dimensão capaz de efetivamente se apropriar dos objetos do meio, os híbridos, talvez sejamos capazes de capitalizar os melhores recursos críticos desses repertórios.


  1. LATOUR, Bruno (1994), Jamais Fomos Modernos. Rio de Janeiro, Editora 34. 

  2. Ibid., p.19 

  3. SHAPIN, S. & SCHAFFER, S. (1985), Leviathan and the Air Pump. Princeton, Princeton University Press. 

  4. Este lugar intermédio, entre o céu e o inferno; esta mansão de almas que morrem sem mérito, nem demérito, onde habitam as almas dos inocentes, dos sem batismo, segundo a teologia medieval. [LE GOFF, Jacques (1999), Un autre Moyen Âge. Paris, Gallimard.]  

  5. ABBOTT, Edwin A. (1992/1884), Flatland – A Romance of Many Dimensions. New York, Dover. 

  6. LATOUR, Bruno (1994), Jamais Fomos Modernos. Rio de Janeiro, Editora 34. p.63 

  7. LATOUR, Bruno (1994), Jamais Fomos Modernos. Rio de Janeiro, Editora 34. p.65 

  8. LATOUR, Bruno (1994), Jamais Fomos Modernos. Rio de Janeiro, Editora 34. p.87 

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