Embora possa ainda soar heresia propor uma releitura dessa constituição ontológica ser-no-mundo sob a perspectiva da simples identidade entre mundo e meio, o mundo circundante (Umwelt), por sua ontologia instrumentalista é aquele cuja análise elaborada por Heidegger, mais se aproxima do sentido requerido e aqui proposto de um meio técnico-científico-informacional.

É preciso entender que a noção de “meio” está atualmente dominada por conotações da biologia, da geografia e da ecologia. Sua aplicação generalizada guarda o viés de sua trajetória conceitual por estas disciplinas. Ou seja, embora se use meio como uma referência tanto ao ambiente humano como ao ambiente animal, as características predominantes nesta noção apontam fortemente para uma definição onde o peso da referência ao mundo animal prevalece.

Mas é exatamente por esta forte conotação com o mundo animal que o termo meio é útil no exame a ser realizado da penúria do mundo circundante reduzido pela tecnologia da informação a apenas um meio técnico-científico-informacional; onde aquilo que Heidegger pensou sobre o animal como “pobre em mundo” pode ser muito elucidativo a respeito deste meio.

Os informatizados de hoje já dão sinal de aprisionamento num mundo pobre de linguagem criativa. Um processo de graves consequências políticas. É que com a avalanche da informatização se vive progressivamente num mundo em que a linguagem natural vai perdendo sempre mais autoridade, num mundo que, em sua tendência histórica, já não necessita das línguas naturais. Pois tudo que o homem conhece, sente, pensa, sabe ou faz, só se torna realmente significativo, só adquire sentido essencial, se houver possibilidade de conversa e diálogo, na medida em que dele se puder falar a partir de sua linguagem. Não há verdade no singular, fora de toda e qualquer envergadura de discurso. Toda verdade é plural. A verdade só se dá por existirmos na linguagem do plural, numa correnteza que nos arrasta para uma convivência de diálogo. Enquanto vivermos, pensarmos e agirmos na Terra, só faz sentido o que pudermos falar uns com os outros, o que puder receber um significado na e da linguagem. O esvaziamento das línguas naturais é uma conjuntura que a informatização progressiva, instalada pela ciência e tecnologia em nosso mundo, traz consigo irremediavelmente.1

Parece, portanto, soar menos como heresia a tentativa de se articular a noção de meio técnico-científico-informacional com a de mundo na constituição ontológica ser-no-mundo. Com efeito, quando o Dasein se encontra aí na ocupação específica de uso da tecnologia da informação, como um “informatizado”, o que se tem é uma redução do “ser-no-mundo” a um “ser-no-meio”.

A ocupação informacional-comunicacional absorve de tal modo o Dasein, que restringe seu “mundo imediato” ao meio técnico-científico-informacional. A tecnologia da informação guarda toda sua vocação e sentido pelo que dis-põe de razão e memória humanas, programada e armazenada em seus circuitos, e pelos remetimentos infindáveis que mantém com disp-osições e dis-positivos deste meio, através da “teia” da Internet.

A penúria deste meio, em relação à riqueza do mundo, recupera a reflexão de Heidegger2 sobre o animal como “pobre em mundo”. Partindo da oposição entre o círculo do possível e a artificialidade da técnica, Heidegger demonstra que o animal é incapaz de artifício, por ser, ao mesmo tempo, privado de tecnicidade e de abertura ontológica. “Pobre em mundo”, o animal não é privado de relação ao ente, mas nesta relação, o ente não aparece “como tal”, e a relação permanece inaparente. Uma situação não muito diversa do homem absorvido pela tecnologia da informação.

No entanto, é preciso sempre evitar, como lembra Heidegger, “a formulação, hoje muito em voga, de que o homem ‘tem’ seu mundo”. Não se tem um mundo, como não se tem um meio. Vive-se um mundo, como se vive um meio, consoante este existencial ser-no-mundo do Dasein, conformado e reduzido, no caso da ocupação com o instrumental informático, pelos aspectos técnico, científico e informacional deste meio, em uma situação de “pobre em mundo”.

Não se trata de pregar uma autonomia da tecnologia da informação ou um determinismo tecnológico, muito menos de se apressar em afirmar que o condicionamento do meio técnico-científico-informacional, ditado através da tecnologia da informação, orienta o conhecimento3) dos entes intramundanos, as novas problemáticas da vida, o portar-se diante das situações, a própria consecução das atividades humanas.

A ocupação no uso da tecnologia da informação é uma imersão abaixo do mundo imediato, em um meio técnico-científico-informacional. A “doação dos desempenhos e das possibilidades de desempenho” proporciona os instrumentos reunidos no engenho de representação, que, por sua vez, está inserido em e pertence a uma rede de remetimentos a outros tantos instrumentos constituídos pela “manualidade informacional-comunicacional”. Com o avanço da informatização, é possível parafrasear Stiegler4, afirmando que esta nova manualidade informacional-comunicacional é constitutiva do ser-no-mundo.

A Internet é o resultado mais atual desta manifestação, uma “teia” ao nível global (world wide web) atendendo uma coletividade de privilegiados com acesso a mesma, e um meio na ocupação informacional-comunicacional de um Dasein qualquer. Assim como diz o ditado popular, “bicho de goiaba, goiaba é”, a tecnologia da informação é o meio técnico-científico-informacional, e este meio é a tecnologia da informação. É alto demais o risco de “inautenticidade” do Dasein na forte acentuação do “impessoal” neste meio.


  1. CARNEIRO LEÃO, Emmanuel, Aprendendo a pensar. Volume II. Petrópolis: Vozes, 1991, pág. 104, grifo meu 

  2. HEIDEGGER, Martin. Os Conceitos Fundamentais da Metafísica. Mundo, Finitude, Solidão. Trad. Marco Antonio Casa Nova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003 

  3. Esse contexto de fundamentação dos modos de ser-no-mundo constitutivos do conhecimento do mundo evidencia que, ao conhecer, a pre-sença adquire uma nova posição ontológica, no tocante ao mundo já sempre descoberto. Esta nova possibilidade ontológica pode se desenvolver autonomamente, pode se tornar uma tarefa e, como ciência, assumir a direção do ser-no-mundo. Todavia, não é o conhecimento quem cria pela primeira vez um “commercium” do sujeito com um mundo a nem este commercium surge de uma ação exercida pelo mundo sobre o sujeito. Conhecer, ao contrário, é um modo da pre-sença fundado no ser-no-mundo. É por isso também que, como constituição fundamental, o ser-no-mundo requer uma interpretação preliminar. (HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo I. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 1998, pág. 101, grifo meu 

  4. STIEGLER, Bernard. La technique et le temps. La faute d’Épiméthée. Paris: Galilée, 1994, pág. 276 

Essência da Informática