Martin Heidegger, em um de seus ensaios, “A época das concepções do mundo” , faz uma longa meditação sobre a essência da Modernidade, ou dos Tempos Modernos, a partir do questionamento a respeito da “concepção moderna do mundo”. A metafísica funda uma era ao meditar sobre a essência de um ente, estabelecendo uma interpretação determinada do ser e do ente, e, ao mesmo tempo, ao decidir por uma acepção da verdade, fixando o modo pelo qual ela advém.
Meditando sobre fenômenos característicos de uma era, pode-se entrever aspectos da metafísica que a orienta. No caso da Modernidade, entre os fenômenos onde os “sinais do Tempo” são vestígios seguros da metafísica que a sustenta encontram-se: a ciência, a técnica, a arte, a cultura.
Sobre as condições de possibilidade da ciência e técnica modernas, Heidegger tem uma tese fundamental: essas condições são de natureza metafísica. “A técnica mecanizada é até aqui o prolongamento mais visível da essência da técnica moderna, a qual é idêntica a essência da metafísica moderna” [[ibid, pág 69.]]. Portanto, parece existir entre engenho de representação, enquanto natureza da informática, e a metafísica moderna, uma perfeita sintonia.
Metafísica aqui é tomada por Heidegger num sentido bastante particular e determinado, que só pode ser esclarecido pela totalidade de sua filosofia. Segundo as indicações de Jean Ladrière , a metafísica é, para Heidegger, uma maneira de determinar o ente.
Para Ladrière, o que Heidegger, chama de ente [[Trata-se de tudo aquilo que, de um modo ou de outro, é; de tudo aquilo que, de uma maneira ou de outra, possui uma forma qualquer de realidade. Ao considerarmos um elemento da realidade como ente, nós o consideramos apenas na medida em que podemos aplicar-lhe este termo simples e misterioso, eminentemente filosófico: ser. Trata-se de um termo absolutamente indeterminado e neutro; e que vale por sua generalidade mesma. Portanto, segundo Heidegger, a “metafísica” é um modo de determinar o ente, de interpretá-lo, de caracterizá-lo e de compreendê-lo. Não se trata, necessariamente, de uma espécie de visão intelectual, de uma concepção explicitamente formulada ou de um discurso sistemático sobre o ente. Sem dúvida, a compreensão do ente pode se exprimir num discurso. Mas ela é, antes de tudo, implícita, vivida. A interpretação do ente é, primordialmente, uma atitude prática e efetiva em relação a ele, um modo de nos situarmos diante dele, de nos relacionarmos com ele. Portanto, no sentido heideggeriano, a metafísica é, primordialmente, uma determinação fundamental do ente que se constitui no implícito e que só é tematizada no discurso de modo secundário. ]], em conformidade com toda a tradição filosófica ocidental, é tudo aquilo que de uma maneira ou de outra pode servir de sujeito ao verbo ser na terceira pessoa do singular. Por conseguinte, tudo aquilo que, a qualquer titulo, pode ingressar no campo da experiência, quer se trate da percepção, da imaginação, do sentimento, do pensamento especulativo, da experiência poética ou da experiência mística.
Heidegger entende que cada época da história ocidental caracteriza-se por uma metafísica. O que interessa especificamente referenciar aqui é a metafísica que domina a chamada “Modernidade”, isto é, a época da Ciência e da Técnica Modernas. Ou seja, a metafísica que norteou o que se denomina a Modernidade em sua determinação do ser, do ente e da verdade. “Tentando expressar aquilo que universalmente pode ser dito de todo ente como tal, a metafísica se inaugura como uma lógica do ente, uma teoria de seus predicados, de sua essência, de sua entidade, enfim uma onto-logia” .
A metafísica dos Tempos Modernos, imanente à concepção moderna de mundo, distingue-se daquela que sustentava a concepção medieval de mundo e a concepção antiga de mundo, na medida em que, nestas últimas, o homem não representa o mundo, ou melhor, não faz o mundo se apresentar diante de si por meio de uma representação, princípio dominante na metafísica da Modernidade.
Entendendo representação [[representação e ideia: Stellen é “localizar (algo), pôr de pé”. A preposição vor significa “diante, em frente a etc.” Portanto, vorstellen é “trazer, mover adiante; pôr algo em frente a algo”; assim “representar, querer dizer, significar” e “introduzir, apresentar uma pessoa” etc. O reflexivo sich vorstellen significa “apresentar-se, introduzir-se” – com um acusativo sich, e “representar para si mesmo, imaginar, conceber” – com um dativo sich. Vorstellung é uma “realização, apresentação, introdução” “ideia, concepção, imaginação etc.” Vorstellung também compartilha da ambiguidade de várias palavras com -ung: ela pode significar o ato de “representar (vorstellen)” ou “o que é representado (Vorgestelltes)”. ]] como uma espécie de imagem do mundo, reproduzida na imaginação do homem a partir da percepção, Heidegger conclui que só a partir do final da Renascença se constitui efetivamente este tipo de representação do mundo a partir da percepção subjetiva, fazendo do sujeito um absoluto e do mundo um espetáculo separado.
Vale dizer que para Heidegger, uma concepção do mundo deve ser entendida como uma “imagem [[Quanto a palavra imagem, devemos pensar na reprodução de alguma coisa. Um Weltbild seria portanto como um quadro do ente em sua totalidade. No entanto, Weltbild diz mais. Pois assim entendemos o Mundo (Welt) ele mesmo, o ente em sua totalidade, assim como nos impõem suas diversas ordens de medidas. Imagem (Bild) designa, por conseguinte, não um simples decalque, mas o que se faz entender na forma alemã: Wir sind über etwas im Bilde (literalmente: “somos quanto a qualquer coisa, na imagem”, ou seja, “somos ou estamos no fato desta coisa”). (…) Fazer a ideia de alguma coisa de maneira a ser fixada, é portanto pôr o ente ele mesmo diante de si para ver de que se trata, e tendo assim o fixado, o manter constantemente nesta representação. (…) Lá onde o Mundo se torna imagem concebida (Bild), a totalidade do ente é compreendida e fixada como aquilo sobre o qual o homem pode se orientar, como aquilo que ele quer por conseguinte levar e ter diante de si, aspirando assim a pará-lo, em um sentido decisivo, em uma representação. Weltbild, o mundo na medida de uma “concepção”, não significa portanto uma ideia do mundo, mas o mundo ele-mesmo apreendido como aquilo que se pode “ter-ideia”. O ente em sua totalidade é portanto tomado agora de tal maneira que ele é só e verdadeiramente ente na medida em que é parado e fixado pelo homem na representação e na produção. (…) O ser do ente é agora buscado e descoberto no ser-representado do ente. ]] do mundo” (Weltbild), onde o termo mundo apresenta-se como uma denominação do ente em sua totalidade. O mundo não se reduziria, por conseguinte, ao Cosmos ou a Natureza, pois a História dele faz parte. Mesmo assim, Natureza e História se penetrando reciprocamente, não esgotam o Mundo, pois esta designação “entende também e, sobretudo, o Mundo em seu princípio”.
Como indica Heidegger, o que faz da concepção do mundo dos Tempos Modernos, algo totalmente distinto das concepções do mundo medieval e antiga, é “que o ente se torne ente na e pela representação”. É preciso cautela neste entendimento. Não foi o Mundo, enquanto imagem concebida que se tornou moderno, deixando de ser medieval. Com efeito, o que caracteriza e distingue os Tempos Modernos é justamente o Mundo ter se tornado uma imagem concebida.
Segundo Heidegger teria havido, em relação ao ente, uma atitude inteiramente distinta a partir dessa época. Neste sentido, uma metafísica distinta daquela da Idade Média e daquela da Antiguidade grega. Ele a chama de “metafísica da representação”. Onde o termo representação se baseia numa metáfora, na verdade, numa dupla metáfora: falamos de representação para caracterizar o estatuto de um representante, de algo que age em nome de outro; mas, também falamos de representação para designar a realização efetiva de um espetáculo, onde o espectador é um puro olhar abstrato, e o espetáculo está presente diante do espectador, como objeto.
A primeira metáfora sugere a ideia de algo que faz às vezes de outrem ou de outra coisa: a representação é uma espécie de transferência de atribuição em virtude da qual uma pessoa pode agir em nome e lugar de outra, servir de lugar-tenente para a pessoa que ela representa. A segunda metáfora, por sua vez, sugere a ideia de presentificação: a representação expõe diante de um espectador, sob uma forma concreta, uma situação significante, figuras evocadoras, encadeamentos de ações exemplares; deste modo, torna presentes o destino, a vida, o curso do mundo, no que eles têm de visível, mas também em suas significações invisíveis.
Os dois sentidos metafóricos estão ligados: quando o destino se torna presente, por exemplo, na tragédia, não é em pessoa, mas através de gestos e palavras que nada mais fazem que dar uma aparência concreta a situações imaginárias nas quais o espectador pode ver a ação do destino; e, simetricamente, a representação que faz as vezes de outro tem sua eficácia pela presença real do representante, que deve se mostrar em pessoa para preencher sua missão. Existe, portanto, na representação a superposição de dois tipos de presentação: por um lado, aquela efetiva e direta de uma pessoa, um ato, um fato; por outro, aquela indireta, mediatizada pela primeira, de uma realidade que não pertence ao campo da apreensão direta. A primeira desaparece de alguma forma sob a segunda, ela reduz sua eficácia ao se fazer instrumento da segunda, permitindo a realidade representada entrar em uma esfera de apreensão, se tornando conhecida. Razão pela qual a representação tem uma importância epistemológica imensa.
Do ponto de vista filosófico, a metáfora da representação é utilizada para significar que o ente é interpretado como um espetáculo dado a um espectador; e aquilo que é assim dado em espetáculo, desempenha o papel de um substituto da realidade. Mas o espectador, na ocorrência, é de certa forma desvanecente: não é um ente ao lado dos outros, mas um puro olhar. Esse puro olhar, este puro espectador, é o que a filosofia moderna chamou de “sujeito”. Se acompanharmos a evolução da filosofia moderna em suas diferentes peripécias, perceberemos que a noção de sujeito cada vez mais se empobrece. Em Descartes, o sujeito ainda é uma substância, uma “coisa pensante”. Em seguida, porém, o conceito de sujeito se purifica. O sujeito se torna, por assim dizer, uma pura função do olhar; converte-se nesta pura instância pela qual o mundo é constituído em espetáculo. A realidade se esgota no fato de ser para um sujeito; o ente é constituído em objeto e interpretado como tal.