Denominamos “momentos”, o que deveria ser melhor compreendido como “processos” ao longo de “períodos”, possivelmente ilimitados, e que desta forma continuam competindo no campo das ideias.
A questão que nos importa, já antecipada em «Tudo está ordenado segundo o Número», poderia ser construída de outro modo. Tanto Koyré1, como outros autores, usam a mesma expressão “matematização da Natureza” tanto para o “momento” platônico (Pitágoras-Platão-Aristóteles), quanto para o “momento” cartesiano (Galileu-Descartes-Newton), variando apenas a potencialização da racionalidade promovida por esta “matematização”, dentro de uma perspectiva atual de gênese e desenvolvimento da ciência moderna.
Entretanto, ao nos aproximarmos da “arquitetura” de pensamento produzida por cada um destes “momentos”, surge aos poucos uma séria dúvida sobre a identidade comum entre a “matematização da Natureza” platônica e a cartesiana. Trata-se de uma mesma “matematização”? Algo associado a própria “evolução” do pensamento ocidental? Onde cada “momento” representaria um novo impulso, mesmo revolucionário, que poderia incluir até o “momento” einsteiniano, que não iremos abordar neste trabalho?
Nossa hipótese é de que tratamos de “matematizações” ontologicamente distintas em cada “momento”. Embora se adote em grande parte uma linguagem comum através dos distintos “momentos”, composta de termos semelhantes, senão idênticos: nem os objetos em questão, as matemáticas e a Natureza, e nem o método, a matematização, são os mesmos.
Em defesa desta hipótese, seria necessário desenvolver uma argumentação muito maior do que será possível aqui, e de certo modo em sintonia com Koyré, ao reconhecer a importância e o papel de nossa herança antiga, especialmente grega.
A filosofia ocidental, se relaciona por inteiro à filosofia grega, “segue as linhas traçadas pela filosofia grega, realiza atitudes previstas por esta. Seus problemas são sempre os problemas do saber e do ser colocados pelos gregos. Quem sou? Onde estou?, ou seja, o que é o ser? o que é o mundo?, são as máximas délficas que se encontram na origem do pensamento ocidental.”2.
Para que se tenha uma certa noção da “arquitetura” do pensamento gerada pelo “momento” original de “matematização da Natureza”, “desenhado” por Pitágoras, “construído” por Platão e “informado” por Aristóteles através da Idade Média, impõe-se um estudo prévio do Número (arithmos) em Pitágoras.
Dentro de uma visão simplista e ordinária da obra pitagórica, só podemos ver o Número, como os críticos em geral até os nossos dias: o Número como uma expressão abstrata da quantidade. Entretanto Pitágoras não o via apenas assim: a palavra número [Do latim numerus, originário do grego nomos — lei, norma, correspondente à grega arithmos, originária do radical rhe, de rhein = fluir.] reúne em si duas ideias originárias de sua etimologia: ordem e ritmo.
O Número é assim algo das coisas móveis, das coisas que conhecem mutações de qualquer espécie (compondo a Natureza estudada pela física de Aristóteles), e, é, ao mesmo tempo, a ordem, como relação entre um todo e as suas partes, esta coerência que dá a “fisionomia” de tensão de um todo3. Portanto podemos dizer com Pitágoras que todas as coisas têm o seu Número, e este nos indica, como já vimos, além da quantidade: a qualidade, o valor, a tensão, o conjunto, a função, a relação, a harmonia, o símbolo, o fluxo, etc.
Para Pitágoras a suprema instrução, o conhecimento superior do homem e das coisas divinas é a Mathesis; mathema é o seu estudo, o seu conhecimento; mathematica, a técnica para este estudo; e mathemata, seu objeto.
Platão não se ateve a exigência socrática das Ideias. Sua análise o conduziu, sob a influência dos pitagóricos, a hierarquizar o real. As Ideias-Números não são as primeiras, derivam de dois Princípios: o Um e a Díade do Grande e do Pequeno. Estas Ideias-Números também estão separadas das coisas sensíveis; entre elas se situam, preenchendo uma função intermediária, as Coisas matemáticas que são ao mesmo tempo aritméticas e geométricas4.
Aristóteles promove uma certa “reforma” na “construção” platônica reduzindo e associando a Ideia platônica, ao que denominou forma (eidos), que estaria imanente na realidade das coisas, e não mais em um mundo supra-sensível. Uma de suas principais críticas a Platão, era de não ter sido mais claro a respeito da função intermediária das Coisas matemáticas, garantindo a “participação” das Ideias-Números nas coisas sensíveis. Defensor de um processo indutivo, valorizando o empírico, preferia que as ideias-formas fossem reveladas pela abstração das coisas sensíveis.
Por outro lado, Aristóteles centraliza no movimento, imanente na própria interação entre forma e matéria, todo o estudo da Natureza. A unidade da física aristotélica admite, no entanto, uma distinção entre um estudo teórico e geral da Natureza, e um estudo analítico e especial dos seres da Natureza, separando dentro deste último os seres animados, ou vivos, daqueles que não o são.
A noção fundamental da Física aristotélica permanece sendo a physis, a Natureza, vista como algo análogo a uma alma: princípio ou virtude, do qual essencialmente ou imediatamente, movimentos ou mudanças começam ou cessam por si mesmos, enquanto passagens naturais de um estado para outro, ou do que é em potência ao que é em ato. Entre as espécies de movimento, associados aos diferentes gêneros de seres ou categorias, Aristóteles distingue o crescimento/decrescimento, a alteração, e o movimento local5.
Desta forma, o movimento pressupõe um móvel e um motor, como se tudo que fosse movido, o fosse por alguma coisa, e de motor em motor chega-se a um primeiro motor, que Aristóteles identifica a Deus. Nesta ascensão, Aristóteles divide a Natureza em duas regiões: a superior, caracterizada pela regularidade imutável dos movimentos que nela se produzem (circulares e uniformes), e a outra sublunar, domínio das coisas que nascem e perecem e estão submetidas à contingência e ao azar (do movimento retilíneo). Para melhor explicar as ações da região supralunar sobre a região sublunar, formula o necessário princípio das quatro causas: final, eficiente, formal e material6.
Koyré considera Aristóteles como o único filósofo grego cuja obra inteira, ou pelo menos sua maior parte, penetrou de forma marcante na Idade Média, a partir de sua tradução em árabe e mais tarde em latim. Segundo Koyré, isto não aconteceu por acidente, mas por se tratar de uma obra que representava àquela época uma “verdadeira enciclopédia do saber humano”.
O fato é que o “conteúdo programático” da filosofia natural até Newton, pelo menos, aquele que o próprio Newton foi exposto ainda como estudante, através do livro-texto Physiologia Peripatetica de Magirus de 1597, seguia os tópicos dos tratados de Aristóteles: a Physica, o De caelo et mundo, o De generatione et corruptione, o Meteorologia, o De mineralibus, o De plantis, o De animalibus, e por último o De anima e o Parva naturalia (incluindo um livro de sonhos).
“De um ponto de vista moderno, entretanto, existe de fato algo de notável, sobre uma disciplina (filosofia natural) que incluía tanto a física e a alma – e tudo mais entre elas. Tal extensão não é partilhada por qualquer divisão moderna do conhecimento.”7.
Deste “resumo dos resumos”, recortando de um corpo filosófico tão vasto apenas o que mais se associa que aqui nos interessa, é conveniente, para se contrapor o “momento” cartesiano, sistematizar em grandes linhas, estas facetas da “arquitetura” de pensamento platônica, após a “in-formação” aristotélica e as eventuais revisões de seus comentaristas até a Idade Média:
- O reconhecimento da complementaridade dos dois princípios cósmicos, essência e substância (ou forma e matéria, ato e potência, qualidade e quantidade, inteligível e sensível), entre os quais se produz toda e qualquer manifestação; sendo a essência, a síntese principal de todos os atributos que pertencem a um ser e que fazem desse ser o que ele é — a Ideia platônica, os números pitagóricos enquanto arquétipos.
- O pólo matéria, hyle em Aristóteles, enquanto princípio universal, é a potência pura, em que não há nada de distinto nem de atualizado, e que constitui o suporte passivo de qualquer manifestação (materia prima), sendo ininteligível por natureza; se tomado em um sentido relativo, representando analogicamente o pólo substancial em relação a uma certa ordem de existência, também é designado por hyle (neste caso, materia secunda), participando de alguma forma da dita ininteligibilidade; portanto não é do lado substancial que se deve buscar a explicação das coisas, mas pelo contrário do lado essencial, ou de cima para baixo.
- A materia secunda de nosso mundo, para ser apta a desempenhar seu papel de substância, deve ser determinada pela quantidade, que é realmente ex parte materia (sugundo Tomás de Aquino, materia signata quantitate); a quantidade é portanto uma das condições da existência no mundo sensível ou corporal, mas não o explica, sendo tão somente um “pressuposto”, a raiz da manifestação sensível;
- A quantidade apresenta-se de modos diferentes, como quantidade descontínua, que é propriamente o Número, e como quantidade contínua, representada pelas grandezas de ordem espacial e temporal; destas destaca-se a quantidade pura como sendo o Número; a extensão, embora tendo um caráter quantitativo, como, aliás, tudo o que pertence ao mundo sensível, não pode ser vista como pura quantidade; por esta razão as concepções de espaço e tempo, não podem nunca ser exclusivamente quantitativas, a não ser por uma redução a noções vazias;
- O verbo latino metiri (medir), está associado com a palavra matéria, assim como mensurar tem a mesma raiz de mente, o que nos reafirma a complementaridade do inteligível e do sensível na própria manifestação; a medida liga-se assim ao domínio da quantidade contínua, às coisas que possuem um caráter espacial, relacionando-se à extensão e aos corpos; sendo no primeiro caso propriamente geométrica e no segundo física , no sentido comum desta palavra; na realidade, este segundo caso reduz-se ao primeiro, pois é enquanto se situam na extensão e ocupam uma certa porção bem definida, que os corpos são mensuráveis, sendo suas outras propriedades suscetíveis de mensuração, na medida em que podem ter de certo modo uma relação com a extensão;
- A medida se liga deste modo à materia secunda, pois diz respeito à extensão e ao que está contido nela, sendo pelo aspecto quantitativo desta extensão que ela se torna possível; entretanto a quantidade contínua não é mais do que um modo derivado da quantidade, só sendo quantidade enquanto participa na quantidade pura, esta inerente à materia secunda do mundo corporal; por não ser o contínuo a quantidade pura, a medida apresenta sempre uma certa imprecisão na sua expressão numérica, dado que a descontinuidade do número torna difícil sua aplicação adequada à determinação de grandezas contínuas;
- O Número é realmente a base de todas as nossas medidas, mas, enquanto considerarmos só o Número, não podemos falar de medida, porque esta é a aplicação do Número a qualquer outra coisa, aplicação que é sempre possível dentro de certos limites; portanto, a quantidade não é o que é mensurável, mas, pelo contrário, aquilo através da qual as coisas são medidas; de fato, a medida é uma “marca” ou uma “determinação” necessariamente implicada por qualquer manifestação, seja de que ordem for e tome o modo que tomar; o conceito platônico e neo-platônico de medida (metros, em grego), estabelece desta forma, o não-mensurável como o que ainda não foi definido, o infinito fonte do indefinido e do finito, sendo o mensurável, o conteúdo definido ou finito do cosmos; a ideia de medida está em ligação íntima com a de “ordem”, ligada a produção do universo manifestado – o cosmos, enunciado por Pitágoras, enquanto uma produção da ordem a partir do caos, o indefinido;
- A ideia de medida evoca imediatamente a de “geometria”, a própria ciência da medida, na qual se baseiam as concepções que assimilam a atividade divina, enquanto produtora e ordenadora do cosmos; segundo Platão: “Deus geometriza sempre” e por esta razão no portal da Academia mandou colocar a inscrição “Ninguém entre aqui se não for geômetra”; por sua vez, não sendo a extensão ou o espaço redutível à quantidade, pois então seria necessário que o espaço fosse homogêneo, e suas partes só se distinguissem entre si por suas grandezas respectivas, pode-se afirmar que não há continente sem conteúdo, ou seja, qualquer coisa não pode existir isolada da manifestação; o que nos leva a questionar se o espaço geométrico foi concebido como apresentando tal homogeneidade, embora para o espaço físico, que contém os corpos, sua presença é suficiente para determinar uma diferença qualitativa entre as porções do espaço que eles ocupam respectivamente;
- Entre as determinações corporais que são incontestavelmente de ordem puramente espacial, podendo ser vistas como modificações da extensão, não há apenas a grandeza dos corpos mas também sua situação, que não é exclusivamente quantitativa, expressa pelas distâncias, pois deve considerar ainda a direção, e talvez outros aspectos certamente qualitativos; no espaço geométrico, que além das noções quantitativas, a grandeza das figuras, considera sua forma (um triângulo e um quadrado de superfícies iguais podem ter grandezas “equivalentes”, mas sua forma os diferencia de maneira irredutível), reconhece-se esta forma espacial como um conjunto de tendências em direção, elemento qualitativo inerente à própria natureza do espaço, assim como a noção de grandeza representa o elemento quantitativo;
- O espaço, bem como o tempo, são condições que definem a existência corporal, mas estas condições são diferentes da “matéria”, ou antes da quantidade, embora se combinem naturalmente com esta; sendo, portanto, menos substanciais, logo mais próximas da essência, o que implica a existência nelas de uma aspecto qualitativo; por esta razão inexiste o “espaço vazio”, pois o espaço está na manifestação, co-extensível ao mundo, o cosmos, sendo uma de suas condições; portanto não tem sentido se perguntar se o mundo é infinito ou limitado no espaço, uma vez que o cosmos representa uma certa ordem de possibilidades particulares, estando limitado pelas determinações que constituem sua própria natureza.
Koyré, A. (1966): Etudes d’Histoire de la Pensée Scientifique. Paris, PUF. ↩
Idem. ↩
Santos, M. F. dos (1960): Pitágoras e o Tema do Número. São Paulo, Logos. ↩
Dumont, Jean-Paul (1993): Elements d´histoire de la philosophie antique. Paris, Nathan. ↩
Robin, L. (1948): La Pensée Grecque. Paris, Albin Michel. ↩
Zafiropulo, J. et Monod, C. (1976): Sensorium Dei. Paris, Belles Lettres. ↩
Cunningham, A. (1995): “How the Principia Got Its Name”, em History of Science XXIX, USA. ↩