A técnica, como reconhecem todos os críticos do tema, não tem certidão de nascimento, ou melhor, sua origem histórica se perde em um passado longínquo, junto com a própria origem da humanidade. Não se pode nem falar que ela seja própria do ser humano, pois existem animais dotados de habilidades técnicas, como a abelha, o castor, o chimpanzé, e tantos outros. Tanto nos animais, como nos seres humanos, como afirma o antropólogo André Leroi-Gourhan, manifesta-se uma tendência a recentrar um meio, em torno de si mesmo; um processo de criação de um meio próprio, a partir de uma desnaturalização do meio natural, agindo de modo a torná-lo não neutro, mas responsivo1, e “performático” como diria Lyotard.

Como afirma Yves Schwartz2, o organismo vivo, em um meio natural, regido por seus determinismos, busca, mesmo com o perigo de sua própria vida, se instituir centro de um meio, já recortado, por sua vez, por seus próprios valores (do organismo). No entanto, podemos reconhecer, no caso específico do organismo humano, uma característica peculiar em sua técnica, que é sua regência, por um grau de intencionalidade, capaz de ir além dos artefatos que se possam fabricar. Uma intencionalidade, cuja natureza é capaz de instituir um campo de culturas humanas que vai diferenciar, instrumentalizar, capitalizar, simbolizar, animar valores e conflitos.

Este campo de culturas humanas, este patrimônio, vai, por conseguinte, se constituir como seu novo meio imediato, sobre o qual recursivamente o ser humano de forma individual e coletiva vai interagir, aperfeiçoando neste contato entre o meio e os demais seres, a técnica que nasce e cresce desta mesma interação.

A identidade da ação humana com a técnica, parece ser a dedução imediata de vários estudiosos desta matéria. A técnica se coloca como uma manifestação do ser humano, em sua relação com a Natureza, formando neste processo iterativo um meio imediato, que lhe é próprio. Este, por sua vez, será continuamente reconfigurado, pela dita manifestação do ser humano, pela técnica, e pelas possibilidades que se oferecem através das fissuras disponíveis neste meio, definido por uma geração de técnica. Fissuras que proporcionam aberturas na articulação homem-meio, para o exercício da criatividade humana.

O meio técnico, portanto, não deve ser visto como outra versão do determinismo ambiental do final do século XIX. Apesar de ficar muito claro para os principais estudiosos da técnica, que efetivamente se estabelece pelo uso intensivo e extensivo da técnica, o que se pode denominar um “imperativo tecnológico”3. Embora controverso, em termos de natureza e extensão, esta condição se impõe pela simples razão que uma estrutura tecnológica qualquer, tem associada a si mesma, uma infra e uma superestrutura, que a sustentam por baixo e por cima.

Um bom exemplo é o do automóvel, enquanto uma tecnologia que requer uma infra-estrutura de vias próprias para seu tráfego, de postos de abastecimento, de oficinas mecânicas, etc.; e, também exige uma cultura que o adote, uma economia que o valorize, uma política industrial que amplie seu desenvolvimento, etc.

Gilbert Simondon tem muito a dizer a este aspecto:

Pode-se portanto afirmar que a individualização dos seres técnicos é a condição do progresso técnico. Esta individualização é possível pela recorrência de causalidades num meio que o ser técnico cria ao seu redor, que o condiciona como ele é condicionado por ele. Este meio ao mesmo tempo técnico e natural pode ser denominado meio associado. Ele é aquele pelo qual o ser técnico se condiciona a si mesmo em seu funcionamento. Este meio não é fabricado, ou pelo menos não fabricado em sua totalidade; ele é um certo regime de elementos naturais envolvendo o ser técnico, ligado a um certo regime de elementos constituindo o ser técnico. O meio associado é mediador da relação entre os elementos constituindo os elementos técnicos fabricados e os elementos naturais no seio dos quais funciona o ser técnico.4


  1. apud SCHWARTZ, Yves. “La technique”, in Notions de philosophie II. Paris: Gallimard, 1995 

  2. ibid. 

  3. WINNER, Langdon. Autonomous Technology. Technics-out-of-control as a Theme in Political Thought. Cambridge, MIT Press, 1977 

  4. SIMONDON, Gilbert. Du Mode d’Existence des Objets Techniques. Paris, Aubier, 1958/1989, pág. 56-57 

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