Stiegler recupera a noção de “finitude retencional”1) de Husserl, para demonstrar que quando a vida se torna técnica por excelência, passa a ser também “finitude retencional”. Além da retenção primária, pertencente ao “grande momento” do objeto, e a retenção secundária, a relembrança, Stiegler afirma também uma retenção terciária, suporte da epifilogênese, à semelhança da chamada “consciência de imagem”, que não teria sido elaborada por Husserl.
Toda apreensão de um presente é assim “a origem de um rabo de cometa de retenções”. Não se trata de uma a série de imagens que fariam cortejo ao percebido, mas de um país que se constitui à medida que avança-se, e que é o país do passado, não menos efetivo que o país do presente.
O “extrair, transformar, estocar, distribuir, reprocessar”, mencionados por Heidegger como modos de desencobrimento no dis-por da técnica moderna, dependem, segundo Stiegler, desta retenção, sem a qual não pode haver estocagem. A retenção informacional-comunicacional seria assim um caso particular de memorização em uma língua técnica.
E, como técnica e conhecer têm a ver entre si, Stiegler pode afirmar também que conhecer, em sua essência, e saber, ainda mais profundamente, seriam “finitudes retencionais”. No caso da estocagem do dis-posto para exploração pela tecnologia da informação, retenções refundadas em língua técnica2), segundo um método informacional-comunicacional.
Certamente se a língua “tecnicizando-se” pode tornar-se informação é preciso que ela já porte em si mesma esta possibilidade. Deste modo, é viável transformar a plurivocidade de um dizer na univocidade de signos3, que facilitem a estocagem e a distribuição certa e rápida. “O modo da língua é determinado pela técnica”. A tecnologia da informação, enquanto engenho de representação, reduz à sua língua técnica, informacional-comunicacional, unívoca, exata e transmissível, a pluralidade de vozes que dão a entender uma palavra.
É a conservação artificial da memória, em próteses tecnológicas da informação e da comunicação, enquanto produção da memória como tal e de suas regras em algoritmos de sua funcionalidade, que caracteriza a informática, como motor da industrialização da memória. Ao se tornar exploração industrial pelo dis-positivo de representação informacional-comunicacional, a síntese sempre performática das regras de sua funcionalidade, codificadas segundo a gramática da língua técnica), é responsável pelo desvanecer das diferenças culturais e, pior ainda, por inutilizar o pensamento meditativo.
Hoje em dia nada mais vem ou se forma em nós. Por que? Porque nos faltam as possibilidades de um comércio de pensamento como uma tradição que nos desperte e nos ajude, porque em lugar de tal comércio nós deixamos nossa língua para os procedimentos das maquinas eletrônicas a pensar e a calcular: este último evento vai conduzir a técnica e a ciência contemporâneas a métodos inteiramente novos e também a imensos sucessos, métodos e sucessos que verdadeiramente porão fim ao pensamento meditativo, como a uma coisa inútil e cuja consequência pode-se bem passar sem. (Heidegger, 1957/1962, pág. 66)
Referências:
Tese de Doutorado em Filosofia (UFRJ, 2005)
A memória se objetiva se sintetizando tecnicamente. Qual é a sintetização passiva característica do “que” da técnica contemporânea, e também do quem que somos?
Existe síntese passiva porque existe finitude retencional. Na época das sínteses analógica, digital e biológica, a finitude retencional é assumida economicamente, tornando-se objeto privilegiado do investimento industrial: o imperativo econômico tem a iniciativa de sua efetividade. Isto tem como primeira consequência uma realização hegemônica do tempo apreendido como cálculo. (Stiegler, 1996, pág. 119 ↩Poderíamos acreditar que a interpretação técnica da língua como instrumento de comunicação e de informação é evidente por si própria, na medida em que a técnica se compreende a si mesma como um instrumento e apresenta todas as coisas sob esse aspecto. Mas à luz do que acaba de ser discutido sobre o que é próprio da técnica e da língua, esta apresentação fica superficial. Pelo contrário, é preciso perguntarmo-nos: em que medida o que é próprio da técnica moderna acaba por se impor à língua levando-a a sua refundação em pura informação, de tal maneira que ela provoca o homem, quer dizer, obriga-o a assegurar a energia natural e a colocá-la à disposição? Em que medida há, além disso, na própria língua, a exterioridade que oferece a tomada e a possibilidade de uma refundação em língua técnica, isto é, em informação? (Heidegger, 1989/1990, pág. 36 ↩
Mas o dizer como mostrar pode igualmente ser concebido e efetuado de tal maneira que mostrar significa somente: dar sinais. O sinal torna-se então uma mensagem e uma instrução acerca de uma coisa que, em si mesma, não se mostra. Um som que retine, uma luz que brilha, não são, tomados em si próprios, sinais. Só são produzidos e impostos como sinais se aquilo que devem significar a cada vez é antecipadamente admitido, se aquilo é dito. Pensemos nos sinais em morse, que são limitados ao ponto e ao traço e nos quais o número e a ordem são associados às sonoridades da língua falada. O sinal particular só pode ter a cada vez uma de duas formas, ponto ou traço. A série dos sinais é neste caso reconduzida a uma série de decisões sim-não. As máquinas são com-postas à produção de tais séries: estas, graças aos fluxos de corrente e aos impulsos elétricos, seguem este modelo abstrato de produção de sinais e fornecem as mensagens correspondentes. Para que tal espécie de informação se torne possível cada sinal deve ser definido de maneira unívoca; da mesma maneira cada conjunto de sinais deve significar de maneira unívoca um enunciado determinado. O único caráter da língua que subsiste na informação é a forma abstrata da escrita, que é transcrita nas fórmulas de uma álgebra lógica. A univocidade dos sinais e das fórmulas, que é necessariamente exigida por este fato, assegura a possibilidade de uma comunicação certa e rápida. (Heidegger, 1989/1990, pág. 38-39). ↩