de Castro – Memória, segundo Stiegler

Como afirma Stiegler (1994), se o homem também se define pela memória genética e pela memória epigenética, isto quer dizer que o processo de externalização e suplementação da memória, é uma ruptura que indica o advento de uma terceira memória, epifilogenética. Esta memória essencial ao humano, é técnica, inscrita no instrumental, que se torna transmissível e acumulável, constituindo uma tradição, um patrimônio, uma herança.

A epifilogênese, acumulação recapitulativa, dinâmica e morfogenética (filogênese) da experiência individual (epi), designa a aparição de uma nova relação entre o organismo e seu meio, que é também um novo estado da matéria: se o indivíduo é uma matéria orgânica e portanto organizada, sua relação ao meio (a matéria em geral, orgânica e inorgânica), quando se trata de um quem, é mediatizada por esta matéria organizada embora inorgânica que é o organon, o instrumento com seu papel instrutor (seu papel de instrumento), o que. É neste sentido que o que inventa o quem ao mesmo tempo em que é por ele inventado. (Stiegler, 1994, pág. 185)

Por outro lado, para Stiegler, o que antecipa, quer, pode, pensa e conhece, é o quem. O suplemento do quem, sua prótese, é seu que. O quem não é nada sem o que pois estão em relação transdutiva1) no processo de exteriorização na vida. Há uma dinâmica do que, irredutível a do quem, na medida em que a lógica do suplemento é “tecno-lógica”, mas que depende da dinâmica do quem como poder de antecipação. Poder este que depende, por sua vez, do “já-aí”2) do que lhe pro-põe seu passado não vivido. Na “negociação transdutiva dos termos, há co-individuação”.

Se a memória pode industrializar-se é porque é tecno-logicamente sintetizada, e esta síntese é originária, na co-invenção do “quem” e do “que”, na constituição do suplemento requerido diante da limitação, do esquecimento, da falta, que demanda um suporte, instrumento e meio de conservação e condições de elaboração.

Stiegler avança assim a questão do tempo apreendido a partir da questão “tecno-lógica”, da memória artificial registrada no instrumento, que é sempre uma herança no “já-aí”, imanente, portanto, ao ser-no-mundo. As estruturas epifilogenéticas tornam possíveis o “já-aí” e sua apropriação, em uma “maiêutica instrumental”. “O paradoxo da exteriorização nos fez dizer que o homem e o instrumento se inventam um ao outro, como uma maiêutica tecnológica” (Stiegler, 1994, pág. 183).

Resgatando também o pensamento de Leroi-Gourhan, Stiegler percorre esta memória em expansão, como verdadeira história da exteriorização da memória, que anuncia o quadro geral de uma história do suplemento do ponto de vista “tecno-lógico”. Por sua leitura do clássico de etnografia “A memória e os ritmos”, Stiegler reconhece os três níveis de memória (genética, epigenética e epifilogenética) como níveis programáticos, ou seja, como gramáticas. E vislumbra uma quarta memória advinda com a tecnologia da informação, enquanto engenho de representação, atuando como “suporte gramatical” de todas, e base da industrialização da memória.

Referências:

Tese de Doutorado em Filosofia (UFRJ, 2005)

DE CASTRO, M. C. O que é informática e sua essência. Pensando a “questão da informática” com M. Heidegger. UFRJ-IFCS, , 2005. Disponível em: <https://www.academia.edu/43690212/O_que_%C3%A9_inform%C3%A1tica_e_sua_ess%C3%AAncia_Pensando_a_quest%C3%A3o_da_inform%C3%A1tica_com_M_Heidegger>

  1. “Entendemos por transdução uma operação, física, biológica, mental, social, pela qual uma atividade se propaga de próximo em próximo no interior de um domínio, fundando esta propagação sobre uma estruturação do domínio operado de lugar em lugar: cada região estrutura constituída serve à região seguinte de princípio e modelo, de gatilho de constituição, de tal maneira que uma modificação estenda-se assim progressivamente ao mesmo tempo que esta operação estruturante. (…) Existe transdução quando existe atividade partindo de um centro do ser, estrutural e funcional, e se estendendo em diversas direções à partir deste centro, como se múltiplas dimensões do ser aparecessem ao redor deste centro; a transdução é aparição correlativa de dimensões e de estruturas em um ser em estado de tensões pré-individuais, quer dizer em um ser que é mais que unidade e mais que identidade, e que ainda não se defasou a relação a si mesmo em dimensões múltiplas.” (Simondon, 1989, pág. 24-25 

  2. O que Heidegger denomina o ”já-aí”, constitutivo da temporalidade do Dasein, este passado que não vivi e que no entanto é meu passado, sem o qual eu não teria jamais tido algum passado meu, esta estrutura de herança e de transmissão, que é a fundação da faticidade-mesma pois a tradição pode sempre me ocultar o sentido da origem que no entanto somente ela me transmite, supõe que o fenômeno da vida que é o Dasein se singulariza na história do vivente na medida em que nele, a camada epigenética da vida, longe de se perder com o vivente quando este morre, se conserva e se sedimenta, se lega à sobrevivência e à descendência como um dom assim como uma dívida, quer dizer como um destino …. (Stiegler, 1994, pág. 150