Michel Henry1 opta, por sua vez, pela valorização da “vida” na crítica fenomenológica da técnica. Para ele, toda a cultura é uma cultura da vida, no duplo sentido que a vida se constitui, ao mesmo tempo, em sujeito desta cultura e em seu objeto. “É uma ação que a vida exerce sobre ela mesma e pela qual ela se transforma ela mesma, enquanto ela é, ela mesma, aquilo que transforma e aquilo que é transformado.” A cultura designa justamente esta auto-transformação da vida no tempo e no espaço, um movimento pelo qual ela não cessa de se modificar a si mesma a fim de alcançar novas formas de realização.
A vida é esse movimento incessante de se auto-transformar e de se realizar a si mesmo, então ela é a própria cultura, ou pelo menos ela a traz inscrita nela e desejada por ela, como aquilo mesmo que ela é. É preciso entender que Michel Henry não se refere à vida reconhecida como o objeto científico da biologia. Trata-se da vida que todos evidenciamos em nossa simples presença e existência, pois a vida se sente e se experimenta a si mesma nos atos-fatos que realizamos ou participamos.
Michel Henry2 demonstra que a vida está no fundamento da análise econômica de Marx, a tal ponto que apenas o “trabalho vivo” é capaz de produzir a realidade econômica e o valor. Para Marx, segundo Henry, a vida tem um caráter subjetivo, ou seja, começa e termina na subjetividade, que constitui a realidade mais essencial de um indivíduo, sua condição metafísica ou ontológica, seu ser, na medida que este ser é a vida. A vida, portanto, é individual e se realiza sob a forma de um “indivíduo vivo”, fundamento único de toda a realidade e “pressuposição de toda a história”, como Marx o designa na Ideologia Alemã.
Por outro lado, Henry reconhece que, em sua análise econômica posterior à 1847, Marx substitui a expressão “indivíduo vivo”, por “trabalhador”. Do mesmo modo, o termo “práxis” que buscava indicar aquele caráter da vida, de força criadora e produtiva, é abandonado em prol de expressões que enfatizam melhor seu duplo caráter de subjetividade e de força, tais como: “subjetividade inorgânica”, “corpo vivo”, “trabalho vivo”, “força de trabalho”, “força subjetiva de trabalho”, “trabalho subjetivo”, e outros mais. A vida tem assim a capacidade de modificar a natureza, extraindo os elementos necessários e impondo uma forma particular, ou seja, configurando dialeticamente com a natureza seu meio próprio, com “valores de uso”.
Para Henry, Marx não defende uma autonomização do indivíduo vivo, mas da vida que o anima. Da mesma maneira, não entende o indivíduo vivo como princípio absoluto, embora ele o seja, em relação a tudo que produz e todos o valores, enquanto manifestação da força criadora da vida. Por conseguinte, o indivíduo vivo ressaltado por Marx, difere do indivíduo definido pelo pensamento, na medida que na sua relação consigo mesmo, relação que é justamente sua própria vida, o indivíduo vivo não sustenta qualquer pensamento, no sentido de representação de um objeto diante de si, ou seja, de uma relação sujeito-objeto.
Criticando a definição de indivíduo, elaborada pelo pensamento ou pela consciência, como em Hegel, Marx se contrapõe a ideia de redução da realidade ao pensamento, e enuncia o indivíduo vivo como princípio da sociedade e da história. O indivíduo vivo não pode ser substituído por entidades abstratas a partir das quais se pretende explicar a totalidade dos fenômenos econômicos, históricos e sociais, e ainda mais estes mesmos indivíduos.
A realidade, por conseguinte, reside na vida e somente nela, e esta vida só existe sob uma forma individual, sob a forma de indivíduos vivos. A realidade da sociedade se acha assim reabsorvida na subjetividade vivida dos indivíduos que a compõem. Para Henry, Marx nega toda realidade à sociedade considerada como uma entidade substancial autônoma. Isto vale para técnica também, na medida que qualquer crítica mais aprofundada da técnica deve-se confrontar a um paradoxo: “a essência original da techne que devemos ter em vista para compreender as formas diversas da técnica e principalmente a técnica moderna que faz abstração da vida, é a vida ela mesma”.
A técnica, com efeito, designa de uma maneira geral um saber-fazer, ou seja, um saber que consiste no fazer, mas um fazer que porta em si mesmo seu próprio saber. Dito de outra maneira, este “fazer constitui um tal saber, e se identifica a ele na medida que se sente a si mesmo e se experimenta em cada ponto de seu ser, enquanto fazer radicalmente subjetivo, tomando sua essência da subjetividade que o torna possível”. O saber-fazer original é a práxis, e portanto a vida ela mesma, pois é na vida que a práxis é o saber-fazer original, que constitui a essência da técnica. Desta forma, como podemos compreender esta alienação da vida na emergência da técnica moderna, sob o aspecto de uma rede de dispositivos e de procedimentos objetivos?
De acordo com Henry (1987), só começamos a compreender este aparente paradoxo, a partir do entendimento, oferecido por Marx, da anterioridade da práxis sobre a teoria, ou da vida sobre a contemplação (como em Arendt3, vita activa e vita contemplativa). A práxis remete à vida, ou seja, à subjetividade, à essência de toda receptividade. A noção de práxis, por conseguinte, define a relação primeira do sujeito ao ser, determinando o correlato primitivo desta experiência: a necessidade, a privação, a ação, o trabalho. Deste modo o objeto sensível encontra na práxis sua essência e seu fundamento. A práxis é o ser do ente, na medida que a dissociação da práxis da teoria significa uma relação fundadora: “a anterioridade do ser ao olhar que sobre ele se dirige”.
A técnica, enquanto práxis determinada, singular e individual, se dá em uma primeira instância, através da experiência de nosso corpo. A essência da técnica pode ser então resumida em um sistema formado por: uma subjetividade individualmente animada pela vida; um corpo orgânico que assente e, ao mesmo tempo, resiste ao exercício desta subjetividade; e, a terra que se impõe como obstáculo maior aos atos desta subjetividade e aos fatos do corpo orgânico. A articulação dos elementos deste sistema, sob a regência de uma subjetividade que enfrenta resistências e obstáculos, faz o corpo ceder e a terra recuar. Os instrumentos e as ferramentas são assim constituídos, pela extensão do poder do corpo ao pôr em obra os poderes próprios da terra, ou seja, pela apropriação de elementos da terra, adequados ao corpo, segundo uma organização imposta pela subjetividade.
Essa copropriação, no aparente destaque de elementos da terra pelo corpo regido pela subjetividade, Henry denomina “Corpopropriação” (Corpspropriation). Através dela transformamos nosso meio, as condições corporais imediatas da vida, a tal ponto que é impossível contemplar uma paisagem sem nela ver o efeito de uma práxis. Todas as dificuldades, à inteligência desta práxis, provém da teoria, ou seja, da representação da práxis, que suscita a ideologia que, por sua vez, interpreta a técnica como a transformação instrumental da natureza pelo homem, com vistas a finalidades impostas por ele. Pela representação, a ação se destaca de seu meio ontológico próprio, a práxis, e as categorias do pensamento racional, se insinuam como causas explicativas (como por exemplo, as causas aristotélicas: material, final, eficiente e formal), em lugar do sistema vivido subjetividade-corpo-terra.
O discurso da técnica, iniciado no Iluminismo sob a denominação de tecnologia, faz da técnica uma “represent-ação”. Ou seja, o discurso da técnica faz com que uma ação se torne presente de novo, porém no pensamento e não no exercício da Corpopropriação, ou seja, dentro de seu campo original, a práxis. Sob esta nova modalidade a técnica pode ser perscrutada pela ciência, de tal forma que pode ser reconstituída de modo a absorver e acumular cada vez mais elementos operacionais da ação humana, intensificando sua função de representação, em detrimento de sua função original de simples instrumento. Um dos eventos cruciais da modernidade é justamente esta passagem acelerada, e dirigida pela ciência emergente, de grãos de ação humana transpostos para a técnica, tornando a ação objetiva. A ação deixa de obedecer às prescrições da vida, desertando seu lugar original na práxis, para se produzir agora no mundo: nas usinas, nas máquinas, nas redes, enfim, no sistema técnico.
Entretanto, como Henry lembra, o que essa técnica moderna nos oferece é, de fato, uma simples aparência de ação, ou como diria Baudrillard, um simulacro de ação. Pois a ação só é possível na e pela subjetividade, como práxis. Do momento que esta ação não “tem mais lugar”, o que se presencia em termos de técnica são pseudo-ações, deslocamentos materiais numa espécie de mimese da vida. A técnica não é mais o instrumento que prolonga o corpo subjetivo e se acha predefinida por ele, cuja manipulação significa pôr em obra os poderes deste corpo, seu exercício e, por conseguinte, uma forma fundamental de cultura: este instrumento se tornou o dispositivo mecânico que funciona por si mesmo na máquina, que se integra, por sua vez, em uma rede de máquinas, cuja ação pré-programada responde ao toque de um botão. Este conjunto crescente de dispositivos que representam a vida, tal é o conteúdo da técnica moderna, o que ela manipula constantemente, o que a constitui em seu ser, em outros termos, o que enreda o ser humano, em substituição à rede original da vida.
A técnica é assim o efeito de um saber, não mais o saber-fazer original que constituiu o meio humano realizado pela Corpopropriação, mas o saber científico. Tal é a revolução radical dos Tempos modernos. Quando o saber que regra a ação é aquele da vida, temos garantida sua auto-realização e seu auto-crescimento, enfim sua cultura, pois ele coincide com a ação, sendo, portanto, a essência de todo saber-fazer. Quando o saber que regra a ação é aquele da ciência, o resultado é outro, pois a natureza deste saber não é mais aquele da vida, mas de uma consciência de objeto, onde se faz abstração das qualidades sensíveis, ou do que os modernos denominam qualidades secundárias. Trata-se do saber de uma objetividade, quer dizer de um processo natural, reduzido todavia pela ciência a seus parâmetros ideais abstratos, às determinações físico-matemáticas do mundo da ciência moderna. Saber e ação não coincidem mais, cabendo ao primeiro uma hegemonia sobre tudo, pois seu correlato é a Totalidade dos processos objetivos que são indistintamente aqueles dos dispositivos instrumentais. Deste modo, é o saber da ciência que rege a técnica, sendo por ela também regido, em lugar do saber da vida, em um círculo vicioso de alienação da vida, que Gilbert Hottois4 soube muito bem precisar sob o nome de “tecnociência”.
Resta, no entanto, uma pergunta neste encaminhamento lógico, como a técnica moderna, isto é, a informação e a transformação do mundo pela ciência é concebível? Como o saber da ciência, ou seja, um puro olhar teórico, que pretende ser, é capaz de vir a praticar uma ação sobre o meio? O fato é que a ação que emana da vida, embora reduzida e desprezada, a ponto de se tornar insignificante, em um meio técnico-científico-informacional, cada vez mais denso em termos destes seus qualificadores, ainda é necessária, mesmo que seja para pressionar um simples botão, comandando o início de uma ação.
O que caracteriza a ação artificializada pela tecnociência é que a parte de trabalho vivo, ou seja, a práxis subjetiva, diminui progressivamente no interior da ação, ao passo que a parte de dispositivo instrumental objetivo não cessa de crescer, ampliando a participação das máquinas e das redes que as entrelaçam. Na medida em que a técnica moderna se imiscui por esta tecedura, o mundo vivido se transforma, ou seja, vai além de sua forma original. Mas não importa, mesmo assim, o simulacro da vida vai sempre requerer a vida para efetivar uma ação, nem que seja em sua iniciação.