Gérard Fourez, A Construção das Ciências
Diante da questão “O nosso discurso realmente alcança as coisas tais como são?”, podemos ficar insatisfeitos com uma teoria do verdadeiro como “verdade para a ação”. As análises anteriores, porém, talvez nos tenham levado a duvidar que haja um sentido em falar dos “objetos tais como são, independentemente de nosso conhecimento”… Para enfrentar esse paradoxo, pode ser útil uma vulgarização de algumas proposições de Kant a respeito da “coisa-em-si .
Kant distingue a “coisa-em-si” (que ele chama de noumenon) do “fenômeno”, ou “coisa fenomênica” (do grego: o que aparece), isto é, o que percebemos e compreendemos. No campo do conhecimento, não podemos perceber mais do que o mundo já estruturado por nossa sensibilidade, nossos conceitos, nossa cultura etc. Colocado de outro modo, só vemos o mundo por nosso intermédio, e entramos em contato unicamente com os “fenômenos” já estruturados em nosso conhecimento. Nesse sentido, o conhecimento da coisa-em-si escapa, segundo Kant, à razão (ainda que ele vá adiante, afirmando que, em nosso engajamento, deparamo-nos com o real). E uma dimensão daquilo que se chama agnosticismo kantiano.
Existe, em nossa cultura ocidental, um mito que fala de maneira reveladora sobre a “coisa-em-si”: é o mito da “busca”. Conhece-se a história dos cavaleiros da Távola Redonda, que vão em busca do Santo Graal, procurando descobrir, por meio de numerosos obstáculos, o “graal”, ou seja, um cálice onde se teria guardado o sangue de Cristo. A noção de verdade e da “coisa-em-si” é com frequência representada por meio deste mito: os cientistas seriam como esses cavaleiros que superam todos os obstáculos ligados às aparências para tentar alcançar finalmente o real em si, a verdade última das coisas.
Talvez fosse mais interessante de ver na noção de “coisa-em-si” apenas uma ideia regulativa, que funciona no âmbito de uma visão teórica: pensar na existência de um átomo “em si” pode ser útil na representação da física, mas só conhecemos os conceitos teóricos de átomos que nós construímos. O filósofo Maurice Blondel (1893) sugere que o problema que consiste em atribuir demasiada importância às “coisas tais como são” ou à “coisa-em-si” provém do fato de que essa atitude tende a privilegiar sempre uma espécie de “real” que se ocultaria por trás do fenômeno; assim, estar-se-ia apenas privilegiando uma nova interpretação do mundo. Para Blondel, pelo contrário, “o real”, se é que o termo possui um sentido, significa o conjunto daquilo que vivemos, o conjunto de nossas representações e não uma realidade que estaria como que escondida por trás das aparências (os fenômenos). Não seria o caso de se procurar, por trás dos objetos fenomênicos, coisas-em-si “mais reais” do que as aparências. Para ele, o real é o conjunto da história da forma como ela se apresenta para nós, de acordo com a maneira pela qual a estruturamos em objetos. Assim, sob uma tal perspectiva, a visão que teria um físico de um fenômeno (como o pôr-do-sol) não atingiria um aspecto mais “profundo” do “real”: seria apenas uma visão diferente daquelas – que tampouco atingem o “real” – que o contemplam sem acrescentar a tecnicidade de uma disciplina científica. Não haveria uma “verdade” que seria mais fundamental do que outras, já que nos encontraríamos sempre diante de uma multiplicidade de interpretações, todas válidas de acordo com um determinado ponto de vista. A questão do fundamento último da ciência por meio de uma verdade última simplesmente não se colocaria mais (Ladrière, 1973). Em outros termos, como mostrou Certeau na trilha de Wittgenstein (de Certeau, 1980, p.45-53), a nossa verdade situar-se-ia sempre “dentro”: “estamos submetidos, embora não identificados, à linguagem comum, sem possibilidade de sobrevoo ou totalização”.