Fourez (Ciência) – Nascimento de uma disciplina: período pré-paradigmático

O período durante o qual uma disciplina está a ponto de nascer, o momento em que ela é ainda relativamente flexível chama-se, de acordo com o grupo de Stanberg (um grupo de filósofos alemães, cf. Stengers, 1981), a fase pre-paradigmatica. É o período em que as práticas das disciplinas não estão ainda bem definidas como, há cerca de 30 anos, a informática ou a vulcanologia. Em vulcanologia, por exemplo, Haroun Tazieff é o protótipo do cientista de uma disciplina em fase pré-paradigmática. Ele se recusa a utilizar técnicas que serão em seguida adotadas por outros vulcanólogos. A sua prática científica parece por vezes que se baseia mais em uma familiaridade com os vulcões do que com métodos extremamente precisos. Essa prioridade do existencial sobre as regras da disciplina caracteriza esse período, assim como a importância dada às demandas sociais exteriores a uma comunidade científica cuja identidade não está clara ainda. Sabe-se aliás como, em especial quando houve a ameaça de explosão do vulcão Soufrière, Tazieff foi contestado pelos “ortodoxos” da vulcanologia (ou seja, aqueles que haviam adotado o paradigma!; Lague, 1977).

O período pré-paradigmático se caracteriza em particular pelo fato de que não existem ainda formações universitárias precisas para se tornar um especialista dessa disciplina. Estes provêm de todos os campos, como se viu, no início dos anos 60, no período pré-paradigmático da informática. Os problemas se originam dé maneira mais ou menos direta da vida cotidana ou, em todo caso, de fora da disciplina: do mundo industrial, militar, da produção, de outras disciplinas científicas etc. Em informática, por exemplo, serão problemas colocados em termos de armazenagem, de gestão, de pesquisa operacional, e assim por diante. Em ciências ligadas ao campo da saúde, serão problemas diretamente colocados em termos de pessoas que estão doentes ou morrendo (o que explica aliás a prioridade da medicina curativa sobre a medicina preventiva). Diz-se, aliás, que, durante esse período, são as “demandas externas” que são determinantes.

Durante o período pré-paradigmático, as realidades sociais são determinantes para a evolução de uma disciplina. Assim, na história da física, as necessidades da navegação, da balística militar, da mineração são preocupações que determinam as direções nas quais o objeto “físico” desenvolver-se-á. Para a informática, pode-se analisar a influência da indústria, e mais particularmente da “gigante” IBM. As questões que se colocaram os geólogos, por ocasião do período pré-paradigmático, foram fortemente influenciadas pelas pesquisas militares e petrolíferas. Quanto à geografia, ela esteve de maneira geral ligada ao “poder”: no período pré-paradigmático, é por vezes difícil distinguir um geógrafo do batedor de uma invasão (e aliás, não é sempre tão fácil fazer essa distinção atualmente, de tal modo a geografia tem servido ao exercício do poder, embora nem sempre para “fazer a guerra” e estabelecer impérios — militares ou econômicos). Por alto, pode-se considerar que a geografia nasceu como uma tecnologia intelectual cujo objetivo era o de facilitar o governo (Lacoste, 1976).

As disciplinas científicas são portanto ligadas a múltiplos mecanismos sociais e mesmo a lutas sociais. São as demandas sociais e a maneira pelas quais os grupos de pessoas procuram responder a elas que determinam pouco a pouco a fisionomia própria das disciplinas. Por vezes, contudo, com o tempo, a demanda social externa pode ser obnubilada a um tal ponto que se poderia acreditar que ela desde sempre existiu. É o caso, por exemplo, da física e de outras “velhas” disciplinas de conceitos “enrijecidos” (Stengers, 1987, esquece-se, por exemplo, da ligação que a matemática teve com as técnicas comerciais e o vínculo que ela mantém atualmente com a nossa sociedade de gestão!). Para outras disciplinas, pelo contrário, pode-se ainda perceber o vínculo entre a sua origem social e o seu atual funcionamento (é o caso para a geografia, a geologia, a medicina, a informática etc).

A atenção aos condicionamentos socioculturais dos paradigmas não deve fazer com que se perca de vista a importância das determinações ligadas a outros componentes da condição humana e de sua evolução. Assim, “a física de Galileu remete ao fato de que vivemos em um meio onde as forças de fricção são geralmente débeis. Se, semelhantes aos golfinhos, tivéssemos vivido em um meio mais denso, a ciência dos movimentos teria assumido uma forma diferente” (Prigogine & Stengers, 1988, p.21). (Gérard Fourez)