Fourez – A comunidade científica pertence à classe média

Gérard Fourez, «A CONSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS»

No entanto, com toda a sua diversidade, a comunidade científica não ocupa uma posição aleatória na sociedade: ela pertence à classe média de nossa sociedade industrial (nos países em desenvolvimento, a comunidade científica ocupa uma posição social diferente, o que exigiria uma análise mais apurada, muito importante para compreender o papel da ciência e da técnica nesses países). Ela pertence, portanto, a grupos que não têm um enorme poder social, mas que, assim mesmo, estão no centro da sociedade e tendem a identificar-se com os “interesses da sociedade”, tais como definidos pelos grupos privilegiados ou pelos grupos dominantes. Essa “classe média” caracteriza-se ainda por uma identificação bastante forte com a ordem social existente (afinal, para essa classe social, a sociedade “não está tão mal assim!”), acompanhada de um ressentimento (“roubam-nos uma parte de nosso trabalho através dos impostos, pela má organização da sociedade, pelo desperdício etc”). Uma boa parte dessas características da classe média (Bellah, 1985) surge na comunidade científica.

A comunidade científica, como grupo com pouco poder direto, tem uma tendência a procurar aliados. Na medida em que os cientistas vivem com certas classes sociais e necessitam delas (a classe média e, com base em determinado nível na hierarquia científica, a classe média alta), a sua comunidade tenderá a identificar-se com os interesses desses grupos. Essas “alianças” influenciarão os seus pesquisadores, tornando-os por vezes mais atentos a certas questões do que a outras, ou dando a uma disciplina uma fisionomia que lhe é peculiar. É desse modo que, se um grupo de matemáticos estuda problemas de tráfego em um aglomerado urbano, é pouco provável que ele deixe de levar em conta os interesses da população que habita as cidades-dormitório em torno da metrópole. Mas não será impossível que ele esqueça os interesses das populações mais pobres que habitam no centro. E depois veremos como a medicina científica se estruturará em torno de um paradigma em boa parte determinado pela prática social de uma medicina individualizada, curativa, visando àqueles que podem pagar por seus serviços (Lambourne, 1970, 1972).

A comunidade científica busca também encontrar aliados que, eventualmente, subsidiarão as suas pesquisas; é portanto um grupo social que tem “algo a vender”, e que procura “compradores”. É desse modo que ela se voltou cada vez mais para o complexo militar-industrial (e para o Estado, que tende cada vez mais a afirmar o seu poder por meio do controle que ele tem das despesas militares. Menahem, 1976; Waysand, 1974; Devooghtem Naisse, 1987; Valenduc, 1986; Kenly, 1986).

No último século, a ciência quase sempre progrediu quando os militares (ou grupos paramilitares e estatais como a NASA) a subsidiaram de maneira maciça. Hoje, a maioria das pesquisas científicas no mundo são direta ou indiretamente militares, mas os militares, tanto de um lado como do outro da Cortina de Ferro, a fim de conservar uma influência sobre a comunidade científica, subsidiam as pesquisas ditas “fundamentais”.

A tendência da ciência moderna de se aliar aos militares, porém, não deve passar sem uma análise mais apurada. A “militarização” da ciência não é a mesma em todos os lugares e em todas as épocas. Assim, nos EUA, sob a administração Carter, uma responsabilidade maior das pesquisas científicas recaiu sobre os civis; já a administração Reagan devolveu uma boa parcela dessas responsabilidade aos militares. Os projetos da “guerra nas estrelas” parecem significar uma nova militarização da pesquisa espacial, da pesquisa em informática etc. Eles tendem a subordinar uma retomada científico-técnica a objetivos militares. Uma parte da comunidade científica sente um certo mal-estar diante dessa situação, mas, como é frequente na classe média, muito individualista, não reage de maneira eficaz (Tocqueville, 1840).