Fourez – os paradigmas e suas eventuais mudanças

FOUREZ, Gérard. A Construção das Ciências. Tr. Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: EDUSP, 1985

A incomensurabilidade dos paradigmas

A analogia dos quadrinhos permite também compreender melhor a dificuldade que pode haver em comparar diferentes tipos de interpretações científicas. Se tenho duas histórias diferentes, não posso encontrar um critério preciso para compará-las, pois os critérios precisos só adquirem sentido no contexto global da história toda. Por exemplo, se tenho uma história em que Milu é inteligente e uma outra na qual ele é besta como um cachorro, é impossível para mim comparar os “méritos” das duas interpretações em pontos particulares; a única coisa que me resta é fazer uma comparação global; mas isto quer dizer que eu não posso me referir a trechos precisos, pois estes assumirão sentidos bem diferentes nos dois casos.

E possível perceber a coerência interna de uma interpretação e, por outro lado, dizer, de maneira global, como eu aprecio as histórias. Porém, a comparação entre as duas histórias não pode ser feita em relação aos detalhes: elas são incomensuráveis. Vejamos o que Kuhn disse da ciência: não se pode comparar por meio de testes precisos, teorias que se referem a “paradigmas” diferentes. Não se pode mais encontrar razões “lógicas” que levam a preferir uma interpretação de uma história em quadrinhos em detrimento de outra.

Mudança de paradigmas

Pode ocorrer também que as incoerências se tornem de tal modo insatisfatórias (insatisfatórias sob que critérios?) que se prefere abandonar um “programa de interpretações” (como um “programa de pesquisas”). Pode-se decidir, por exemplo, que, em vez de estar perseguindo perigosos malfeitores, Tintin esteja à procura de um tesouro; ou, em vez de interpretar a história em quadrinhos como uma história de aventuras, ela pode ser considerada como uma história de ficção científica; existem nesses casos pistas de pesquisa bem diferentes. Pode-se, fazendo uso de nossa analogia e de conceitos que serão desenvolvidos adiante, comparar esse tipo de modificação com mudanças de paradigmas na perspectiva de Kuhn (1972), ou programas de pesquisa no sentido de Lakatos (como a adoção da interpretação do calor como energia, e não como fluido; Lakatos & Musgrave, 1970).

Trata-se então de uma maneira inteiramente diversa de examinar o fenômeno. Levando avante a nossa analogia, pode-se perguntar se esse tipo de mudança não poderia também ser comparado (lembrando que se trata apenas de analogias) à adoção de uma outra disciplina científica para abordar um fenômeno. Se considero o fenômeno do amor, por exemplo, posso ter um enfoque biológico, com base no qual toda a teoria far-se-á em função dos hormônios; mas posso também ter uma abordagem psicológica, em que entrarão em consideração os conceitos do inconsciente, do desejo etc; posso ainda considerar outras dimensões do que se chama amor. Cada uma dessas interpretações se rege por critérios determinados. Elas serão “interessantes” na medida em que satisfizerem aqueles que as produzem (mas, o que significa “satisfazer”, e que critérios serão então considerados?).