Gérard Fourez, A Construção das Ciências
Quando uma disciplina está “estabelecida”, fala-se de período paradigmático. É a época durante a qual ela tem o seu objeto construído de maneira relativamente estável, e suas técnicas são relativamente claras. Nesse momento, os problemas não são mais definidos tanto pelas demandas “externas” quanto por termos “disciplinares”. Será preciso, por sinal, traduzir o tempo todo as questões da vida cotidiana em termos paradigmáticos e vice-versa.
Desse modo, em medicina, em termos pré-paradigmáticos, falar-se-á de uma dor de barriga, enquanto, em termos paradigmáticos, será preciso traduzir essa demanda externa em termos mais disciplinares, falando por exemplo em hiperacidez no estômago ou coisas semelhantes. Depois, será necessário traduzir novamente o problema em termos de existência cotidiana, prescrevendo remédios, por exemplo, e indicando como devem ser tomados, impondo ou discutindo regimes para a vida toda.
No período paradigmático, as pesquisas serão efetuadas em geral de maneira “técnica” (isto é, em termos que se referem às escolhas paradigmáticas): assim, haverá uma tendência menor a fazer pesquisas sobre a “dor de barriga” do que sobre objetos já determinados pela disciplina, como as “úlceras estomacais”, ou outras questões ainda mais técnicas, definidas em termos bioquímicos, por exemplo.
De igual modo, em informática, no período paradigmático, o conceito de “armazenagem” tem cada vez menos a ver com o que pensa o merceeiro, mas será definido de uma maneira bem mais precisa no interior de um conjunto conceituai determinado pela matriz disciplinar e pelas teorias da informática.
Vimos também como, em medicina, a significação da palavra “curar” depende do paradigma dessa disciplina, a ponto de que se fala que se pode curar uma doença quando, de maneira concreta — ou seja, quando não se eliminaram as variáveis econômicas e culturais -, ela não pode ser na verdade curada.
Em todos esses casos, pode-se perceber ao mesmo tempo a força e a debilidade das abordagens paradigmáticas. Elas são fortes porque, sem elas, não conseguiríamos resolver a metade das questões concretas que resolvem as nossas técnicas modernas. Elas são débeis porque, separando-se cada vez mais da existência cotidiana, elas só resolvem os problemas pensados pelos especialistas, e não aqueles que sentem as pessoas em seu cotidiano. No fundo, a força da ciência provém de que os seus paradigmas simplificam suficientemente o “real” a fim de poder estudá-lo e agir sobre ele. Porém, é também em seu período paradigmático que se começa a criticar a ciência por se separar dos problemas da sociedade, assim como as tecnologias.