Leibniz – Inatismo virtual

Leibniz, Novos Ensaios sobre o Entendimento Humano , trad. de A. Sérgio, pp. 65-68.

Filaleto — Suposto que de fato existam verdades que possam estar impressas no entendimento sem que este se aperceba da sua existência, não vejo como, pelo que toca à origem, elas possam diferir daquelas que ele é só capaz de conhecer.

Teófilo — O espírito não é só capaz de conhecer essas verdades: é também capaz de as achar em si; e, se tivesse só a simples capacidade de receber conhecimentos, ou um dom passivo para tal efeito, tão indeterminado como o tem a cera para receber figuras várias, ou a tábula rasa para receber as letras, — nesse caso não seria origem das verdades necessárias, assim como acabo de mostrar que o é; pois é incontestável que os sentidos não são bastantes para nos fazer ver a necessidade de tais verdades, e que tem assim o espírito uma disposição (tanto ativa como passiva) para ele mesmo as tirar do seu próprio âmago, — apesar de que os sentidos são necessários, sem dúvida alguma, para lhe dar ocasião e atenção para proceder de tal maneira e se encaminhar a umas de preferência a outras. Vedes, pois, que aquelas pessoas (aliás muito doutas) que têm sustentado opinião diversa parece que não meditaram suficientemente nas consequências que se derivam da diferença que existe entre as verdades que são necessárias (ou verdades eternas) e as verdades de experiência, — como já tive ocasião de o fazer notar, e como o revela de maneira clara toda esta discussão entre nós dois. A prova originária das verdades necessárias procede exclusivamente do entendimento; as outras verdades são provenientes das experiências, ou das observações dos sentidos. Tanto a umas como a outras é capaz de conhecer o nosso espírito; das primeiras, contudo, é ele a origem; e qualquer que seja o número de experiências particulares que de uma verdade universal possamos ter, não é possível por simples indução assegurarmo-nos para sempre de tal verdade, sem conhecermos pela razão o seu carácter de necessária.

Filaleto — Mas não será certo que, se as palavras: existir no entendimento, envolvem algo de positivo, elas significam ser apercebido e compreendido pelo entendimento?

Teófilo — Quanto a mim, significam cousa muito diversa. Basta que o que existe no entendimento possa ser encontrado no entendimento, e que as origens, ou provas originárias, das verdades de que se trata jazam unicamente no entendimento. Podem os sentidos insinuar, justificar, confirmar essas verdades; mas não podem demonstrar a sua certeza infalível e perpétua.

Filaleto — Quem se der ao trabalho, no entanto, de refletir nas operações intelectuais com um tudo nada de atenção há-de descobrir que esse assentimento, dado sem custo pelo espírito a um certo número de verdades, depende da faculdade do espírito humano.

Teófilo — Muitíssimo bem. Mas é essa relação particular entre o espírito humano e tais verdades que torna o exercício da faculdade, com respeito a elas, natural e fácil e que faz que lhe chamemos verdades inatas. Não se trata, pois, de uma faculdade nua, a qual consistisse unicamente na possibilidade de compreendermos essas verdades; trata-se sim de uma disposição, de uma preformação, de uma aptidão, a qual determina a nossa alma e faz que as possamos tirar dela. De maneira análoga, há diferença entre as figuras que damos à pedra, ou ao mármore, indiferentemente, e aquela que os veios marcam já, ou que estão dispostos a marcar no caso de o obreiro se aproveitar deles.