Japiassu: Múltiplas interpretações sobre Galileu

Excertos de Hilton Japiassu, «A Revolução Científica Moderna»

Precisamos reconhecer que Galileu sempre constituiu o objeto de múltiplas interpretações que, segundo os pontos de vista ou as ideologias de seus intérpretes, acentuam ou reforçam este ou aquele aspecto de sua obra. São diversas suas leituras. No entanto, praticamente todos os autores nela reconhecem algumas características comuns fundamentais. Koyré, como vimos, fundando-se numa concepção idealista e platonizante, identifica a revolução galileana à matematização: “O que constitui o verdadeiro tema do Diálogo sobre os dois maiores sistemas do mundo é o direito da ciência matemática, da explicação matemática da Natureza, por oposição à não matemática do senso comum e da física aristotélica”. Por sua vez, Ernst Mach e Stillman Drake privilegiam o papel das experiências realizadas por Galileu sobre a queda dos corpos ou a trajetória parabólica: viram nele o pai da experimentação e o pioneiro da ciência experimental. Em contrapartida, Paul Feyerabend insiste, com ironia provocativa, que toda a ciência galileana se situa na ordem da representação: não constitui um discurso dos fatos nem tampouco a expressão do real, mas tão somente uma “colocação em forma” humana, social, cultural e histórica dos fatos. Outros preferem ver em Galileu o inventor da mecânica. Bertrand Gille, por exemplo, em sua famosa Histoire des techniques (Gallimard), mostra que ele está profundamente vinculado à tradição dos artesãos, dos construtores e engenheiros: seu grande mérito seria o de ter percorrido o caminho que vai do estudo das máquinas a uma visão mecanicista do mundo: “É com Galileu que ingressamos na mecânica moderna (…) ela inaugura realmente os inícios da ciência”. E Isabelle Stengers mostra que, ao destruir a concepção grega e aristotélica de uma natureza orgânica, viva, dinâmica e irracional, Galileu a substituiu pela de uma natureza mecânica tão regular quanto uma máquina: “Galileu é, para mim, o inventor da mecânica racional”. Todos esses pontos de vista, insistindo na matematização, na experimentação, na representação e o mecanicismo, pouca ou nenhuma importância dão ao caráter profundamente social da ciência moderna, a seu fato de socialização ou de suas circunstâncias ou condições propriamente sócio-culturais. Porque a sociedade determina, não somente as formas (os princípios metodológicos e epistemológicos que orientam as pesquisas científicas e a distinguem das demais atividades de conhecimento ou de cultura), mas os conteúdos do saber científico. Constitui um erro acreditarmos que podemos fazer tabula rasa de todo condicionamento anterior e que a busca da verdade só tem que prestar contas à luz natural da razão.

Aliás, o grande erro de Galileu foi o de não ter percebido a profunda incompatibilidade entre o novo saber que propunha e a sociedade na qual vivia. O geocentrismo constituía a ideologia dominante e hegemônica de um mundo ainda feudal e nobiliário, ao passo que a nova cultura e o intelectual de tipo novo passam a desempenhar sua função em relações sociais totalmente diferentes: as relações burguesas. Assim, a batalha em prol do novo tipo de saber não podia ser travada a não ser que se pusesse em questão as antigas formas de poder. Mesmo inconscientemente, Galileu teve que se defrontar com as estruturas do poder reinante. Por isso, toda a sua atividade entrou necessariamente em conflito aberto com o poder da Igreja, que não podia admitir nem tolerar que fosse posto em discussão seu papel de direção no domínio da cultura e da ideologia. A teoria heliocêntrica, que resumia toda a nova ciência (astronômica e física), implicava, além da a destruição da escolástica, da desqualificação do princípio de autoridade (“a autoridade passa a ter menos peso que a razão”, diz Fontenelle) e de uma nova relação do homem com as coisas, um materialismo atomista inaceitável pela ortodoxia religiosa no poder. Este atomismo ameaça destruir toda a física aristotélica e, igualmente, as próprias bases tomistas de sustentação das verdades teológicas e da fé cristã. No fundo, o que se encontrava em jogo, não somente em 1616, mas, sobretudo, em 1633, quando Galileu foi condenado, não era a fé católica, mas a hegemonia cultural da Igreja e a estrutura de poder que sobre ela repousava. E foi justamente para não perder seu poder, que a Igreja não tinha saída: tomou a posição conservadora de condenar Galileu e submeter o discurso científico (a física) a finalidades que lhe são estranhas (à metafísica).