Japiassu: Experimentação, fundação da ciência moderna?

Excertos de Hilton Japiassu, «A Revolução Científica Moderna»

Frequentemente se fala do advento da ciência moderna como do advento de uma ciência experimental. Seu caráter experimental é inegável. Mas qual é seu estatuto epistemológico? Nessa época, o conceito de “experiência” não é unívoco, mas equívoco. Não se trata da experiência bruta, da experiência vivida ou do senso comum, da observação meticulosa dos fatos vindo transformar as ideias recebidas. Esse tipo de experiência é apanágio da ciência aristotélico medieval. Para mostrar a diferença entre a ciência tradicional, construída sobre esse tipo de experiência, e a ciência moderna, ciência teórica, Koyré constrói o conceito de experimentação.

O que vem a ser a experimentação? Não é uma observação dos fenômenos naturais. E uma interrogação feita à natureza. Interrogação formulada numa linguagem geométrica. Por isso, o que se encontra em jogo, na física matemática galileana, não é a experiência. Porque a passagem de Aristóteles a Galileu não é a do dogmatismo teórico à evidência empírica. É a passagem da evidência empírica do senso comum à autoridade da evidência matemática. Esta não se deriva da experiência nem da observação. Porque seus objetos não são reais ou naturais. A constituição de uma física matemática implica que o cientista se situe fora da realidade. Implica ainda que substitua os objetos, as coisas e os acontecimentos quotidianos por um universo de objetos geométricos. As experiências de que se reclama Galileu constituem apenas experiências em pensamento. Entre o dado empírico e o objeto teórico há uma distância intransponível. Essa distância constitui uma diferença ontológica entre os objetos geométricos e os reais. E como a física arquimediana é uma física axiomática, a priori, não tem a experiência como ponto de partida nem como resultado. Nela, a experiência é uma experimentação, vale dizer, uma interpretação da teoria, uma medida da distância entre o mundo teórico e o real. Numa palavra, uma realização teórica.

Precisamos não nos esquecer de que a mudança de ontologia axiomática, que caracteriza a revolução científica galileana e cartesiana, constitui um problema filosófico e, ao mesmo tempo, epistemológico. O problema filosófico que está em jogo é o da matematização da ciência da natureza. Sobre ele se dividem os platônicos e os aristotélicos. Os platônicos proclamam o valor supremo das matemáticas, atribuindo-lhes um valor real e uma posição dominante na física e para a física. Os aristotélicos, ao contrário, veem nas matemáticas uma ciência “abstrata”, tendo um valor menor que as ciências que se ocupam do real; pretendem fundar a física diretamente sobre a experiência, a matemática só desempenhando um papel secundário. Portanto, trata-se de uma questão filosófica, e não científica, pois não se tem em vista discutir a certeza das demonstrações geométricas nem tampouco seu emprego nas ciências. A questão é ontológica: o que deve ser o mundo real para que a ciência desse mundo possa converter-se numa ciência matemática. Neste sentido, a ciência moderna, desde suas origens, seria uma ciência platônica: o sentido do platonismo era o matematismo.

Mas esse platonismo também é uma questão epistemológica. Porque dizer que se deve pensar o mundo físico no quadro de uma axiomática, é reconhecer que algo desse mundo se torna impensável: a qualidade. Se a matemática é um pensamento das grandezas e das quantidades, a qualidade fica excluída do mundo da ciência. Consequência: a ciência do mundo não pode mais provir dos sentidos, e a percepção não pode mais estar na origem do conhecimento. A ciência passa a constituir apenas uma questão de razão. Galileu e Descartes suprimiram a noção de qualidade. Declararam-na subjetiva. Eliminaram-na do mundo da natureza. Por isso, suprimiram a percepção dos sentidos como fonte do conhecimento. E declararam que o conhecimento intelectual constitui nosso único meio de apreender a essência do real. Sua tese epistemológica fundamental consiste em dizer: “A boa física se faz a priori”. Por conseguinte, a ciência moderna representa uma “revanche de Platão”. Neste sentido, o pensamento filosófico moderno não toma o caminho da realidade, mas o de sua realização. Melhor ainda, o da libertação do homem: liberá-lo do empírico, do paradoxo, da desordem, do não-sentido, para que advenha o racional, para quê o ser se inscreva em relações e adquira sentido.