Russell (Problemas Filosofia) – O problema da indução

Evidentemente, se nos perguntam por que cremos no alvorecer de amanhã, parece natural que reconvenhamos: «porque sempre até hoje sucedeu assim.» Firmamo-nos em que o Sol se levantará para o futuro, porque sempre no pretérito se levantou. Se nos desafiarem a abonar a crença de que se levantará no porvir como até aqui, apelaremos para as leis do movimento: a Terra (alegaremos nós) é um corpo isolado, animado de movimento de rotação, e todos os corpos em tais condições não cessam nunca de dar o seu giro sem que haja uma interferência do exterior: ora nenhum objeto do exterior existe que possa interferir na nossa Terra, na intercadência de hoje até amanhã. Naturalmente poderia duvidar-se se é absolutamente certo que nada do exterior interferirá no caso: porém não é essa a dúvida que realmente interessa. A dúvida realmente interessante é se as leis do movimento continuarão a operar, e se durarão de hoje até amanhã. Se se levanta tal dúvida, recaímos na posição em que caímos há pouco quando se nos deparou pela primeira vez a dúvida acerca do nascer do Sol.

A única razão para termos crença de que as leis do movimento continuarão operantes — é a de que se verificaram até agora, na medida em que o conhecimento do passado nos habilita aqui a formular juízo. Temos, na verdade, muito maior dose de experiência passada a favor das leis do movimento em geral, que a favor da repetição do nascer do Sol, por isso mesmo que o despontar do Sol é apenas um caso particular do cumprimento das leis do movimento, e há uma infinidade de casos mais. Mas o verdadeiro problema é este: poderá um número qualquer de casos em que no passado se verificou uma dada lei — garantir-nos a verificação dessa lei no futuro? Se não, claro que não teremos motivo firme para esperar que o Sol se levantará amanhã, ou que nos não há-de envenenar o pão com que no próximo repasto nos alimentaremos, ou que pontualmente virá a efeito qualquer das outras experiências várias, quase inconscientes na maioria, em que se funda o ordinário da nossa vida. As expetativas — notai — são apenas prováveis. Não há, pois, que buscar a prova de que devem realizar-se as expetativas, mas tão-somente alguma razão em que se possa amparar a nossa crença de ser verosímil que se verifiquem […]

Poder-se-á objetar […] que sabemos que os fenômenos da natureza se encontram todos sob um regime de leis, e que muitas vezes nos é possível, tomando por base as observações que fizemos, verificar que uma lei, e tão-só uma lei, pode convir possivelmente a todos os fatos do nosso caso. Ora, há duas respostas para tal argumento. Primeira: ainda suposto que alguma lei, daquelas leis para que não há excepções, se aplique de feito ao caso em questão, nunca na prática pode haver certeza de que se logrou aceitar essa dita lei, e não uma lei para que haverá excepções. Segunda: o mesmo regime de leis naturais parece ele próprio só ser provável, e a nossa crença de que valerá para o futuro, e para casos do passado para que não houver inquérito, tem por alicerce este próprio princípio que se está sujeitando a discussão e exame.

A este princípio de que estamos tratando chamemos-lhe o princípio da indução, ou princípio indutivo.

As duas partes de que ele se compõe poderemos formulá-las do seguinte modo:

a) Quando uma cousa de uma certa espécie, A, se achou associada frequentemente com uma cousa pertencente a uma outra espécie, B, e nunca foi vista dissociada de uma cousa pertencente a esta segunda, digo que quanto maior for o número dos casos em que A e B se encontram unidos, maior será a probabilidade de os achar unidos num novo caso, em que damos pela existência de um deles.

b) Debaixo de idênticas circunstâncias, um número suficiente de casos nos quais a associação realmente se deu fará que a probabilidade de uma associação futura se devolva para nós em quase certeza, aproximando-a desta indefinidamente.

Assim formulado, o princípio aplica-se exclusivamente à verificação da expetativa que nós tivermos num novo caso particular que ocorra. No entanto, desejaríamos saber outrossim o seguinte: se acaso existe, além daquela, probabilidade a favor da lei geral de que as cousas pertencentes à espécie A se encontram sempre associadas com cousas pertencentes à espécie B, se se sabe de um número suficiente de casos em que a dada associação se verificou, e nenhum caso da falta dela.

Evidentemente, é menor a probabilidade da lei geral que a probabilidade do caso particular: pois, se for verdadeira a lei geral, o caso particular será verdadeiro, ao passo que este último pode ser verdadeiro sem que seja verdadeira a lei geral. Não obstante, a probabilidade que tem a lei geral vai aumentando com as repetições, assim como a do caso particular. Podemos retomar, por isso mesmo, aquelas duas partes do nosso princípio no que diz respeito à lei geral, fazendo-o nos seguintes termos:

a) Quanto maior haja sido o número de casos nos quais uma cousa da espécie A mais se associou a uma cousa da espécie B, digo que mais provável então será (suposto que se não conhece caso algum em que se não verificou a associação) que A esteja sempre associado com B.

b) Debaixo de idênticas circunstâncias, um número suficiente de casos nos quais a associação realmente se deu faz que se torne quase certo que A se ache sempre associado com B, e que de tal sorte esta lei geral se aproxime indefinidamente da certeza.

Devemos notar que a probabilidade é sempre relativa a uns certos dados. Os dados, no tema presente, são só os casos que nós conhecemos em que se deu a coincidência de A e B. Outros dados haverá, talvez, que poderíamos tomar em consideração, e que viriam alterar a probabilidade de maneira bastante grave. Suponha-se um homem que houvesse visto um grandíssimo número de cisnes brancos: poderia esse homem muito bem julgar, atendo-se aí ao nosso princípio que era cousa provável, consoante os dados, que todos os cisnes fossem brancos: e seria um raciocínio de correcção perfeita. Este raciocínio não é confutado pelo fato de alguns cisnes serem negros: com efeito, pode muito bem suceder uma cousa, sem embargo do fato de que certos dados tornem improvável que ela ocorra. Nisto dos cisnes, poder-se-ia muito bem saber que a cor, em numerosas espécies de animais, é carácter que varia muitíssimo, e que uma indução relativa à cor, por isso mesmo, está muito especialmente sujeita a erro. Esse conhecimento, porém, viria a constituir um dado novo, que não provaria que a probabilidade, em relação aos dados anteriormente existentes, houvesse sido mal estimada. O fato, pois, de que as cousas deixam frequentemente de nos satisfazer as expetativas não é prova de que as expetativas não serão provavelmente satisfeitas, em certo caso determinado, ou numa determinada classe de casos. Assim, o princípio indutivo, ou da indução, não é susceptível de ser refutado por nenhum recurso à experiência.

Mas o princípio indutivo, por outra banda, é também insusceptível de ser provado por qualquer recurso à experiência. Podemos conceber que a experiência o confirme para os casos que já foram examinados; porém, para todos os casos não examinados ainda, é só o princípio da indução o que pode justificar qualquer inferência daquilo que já foi examinado para aquilo que não foi examinado ainda. Toda sorte de raciocínio que, sobre a base de experiência havida, conclua a respeito do futuro (ou a respeito das partes não experienciadas do tempo passado ou do presente) pressupõe o princípio da indução; portanto, nunca podemos recorrer à experiência para provar o princípio da indução sem por aí cairmos num vício lógico, que é o vício de petição de princípio. Assim temos, por consequência, — ou que aceitar o princípio indutivo por virtude da sua própria evidência intrínseca, ou que renunciar a justificar de algum modo as nossas expetativas quanto ao futuro. Se o princípio não tiver validez, não haverá motivo para a expetativa de que o Sol amanhã se levantará, nem para a expetativa de que cairemos à rua se nos lançarmos do telhado da nossa casa. Quando virmos acercar-se de nós o vulto do mais certo dos nossos amigos, não teremos razão para não supor que se encontre alojado nesse mesmo vulto o espírito do inimigo que nos mais odeia, ou alguma pessoa inteiramente estranha. Todo o nosso proceder ordinário é em associações que se fundamenta, as quais foram operantes no tempo passado e que por isso temos como provável que haverão de operar também no futuro; e a validez da probabilidade depende do princípio da indução.

Os princípios gerais da ciência — como a crença num regime de leis, ou a crença de que para cada sucesso deverá sempre existir uma causa — estão tão dependentes do princípio indutivo como todas as crenças em que nos apoiamos no nosso proceder quotidiano. Acreditamos nesses princípios porque inúmeros exemplos da sua verdade têm sido achados pela espécie humana, e nenhum exemplo de falsidade. Isto, porém, não nos ministra prova alguma de que sejam verdadeiros para o futuro, a não ser que se admita primeiramente esse mesmo princípio da indução.

Toda sorte de conhecimento que, tomando a experiência como fundamento, pretende revelar-nos qualquer cousa sobre o que não foi experienciado tem sua base numa certa crença que não pode achar, na nossa experiência, nem apoio, nem desbarato: a quem não pode a mesma experiência — nem confirmar, nem refutar; crença que, sem embargo disso (quando mais não seja, nas aplicações mais concretas), parece tão arreigada no nosso espírito como muitos dos fatos da nossa experiência.

Bertrand Russell, Os Problemas da Filosofia, trad. de António Sérgio, 1939, pp. 80-92.