Em primeiro lugar, não pode haver ciência sem que não haja uma ampla convicção instintiva da existência de uma “ordem das coisas” e, particularmente, de uma “ordem da natureza”. Usei a palavra “instintiva” deliberadamente. Não importa o que os homens expressem em palavras, suas atividades são controladas por determinados instintos. Até isso ter ocorrido, palavras não são importantes. Essa observação é importante a respeito da história do pensamento científico. Pois perceberemos que, desde o tempo de Hume, a filosofia da ciência em voga tem sido usada para negar a racionalidade da ciência. Essa conclusão é patente na filosofia de Hume. Tome-se, por exemplo, a seguinte passagem da parte IV de sua obra Investigação sobre o entendimento humano:
Em uma palavra: todo efeito é um evento diferente de sua causa. Portanto, não poderia ser descoberto na causa; e a primeira invenção ou concepção dele, a priori, é necessariamente arbitrária.
Se a causa em si não revela informação quanto ao efeito, de modo que a primeira descoberta dela deva ser “necessariamente” arbitrária, infere-se imediatamente que a ciência é impossível, exceto se entendida como conexões estabelecidas “inteiramente arbitrárias”, que não são asseguradas por nada intrínseco à natureza das causas ou dos efeitos. Algumas variantes da filosofia de Hume têm prevalecido entre homens da ciência. Contudo, a crença científica deparou com uma emergência e precisou tacitamente remover a montanha filosófica.
Em virtude dessa grande contradição no pensamento cientifico, é de primeira ordem considerar os antecedentes de uma crença que é inacessível à busca de uma racionalidade consistente. Temos, portanto, de descobrir a origem da crença instintiva existente quanto à “ordem da natureza” e que pode ser descoberta em cada evento particular.
Naturalmente, todos nós partilhamos dessa crença e, por conseguinte, acreditamos que a razão para ela é nossa apreensão de sua verdade. Contudo, a formação de uma ideia — tal como a ideia de “ordem da natureza” —, a percepção de sua importância e a observação de sua concretização em diversos exemplos não são, de forma alguma, consequências da verdade da ideia em questão. Coisas triviais acontecem e a humanidade não se preocupa com elas. Dedicar-se à análise do óbvio requer um espírito bastante inusitado. Por isso, quero estudar os estágios em que essa análise toma-se explícita e, por fim, irreversivelmente gravada nas mentes eruditas da Europa ocidental.
Obviamente, as principais recorrências da vida são muito insistentes para permitir a constatação de uma racionalidade humana mínima; e mesmo antes do começo da racionalidade elas fixaram-se nos instintos dos animais. É desnecessário à abordagem do assunto o fato de que, em grandes linhas, certos estados gerais da natureza ocorrem periodicamente e de que nossa verdadeira natureza adaptou-se a essas repetições.
Há, contudo, um fato complementar que é igualmente verdadeiro e óbvio: nada jamais torna a acontecer em seus mínimos detalhes. Nenhum dia é igual a outro, nem invernos o são. O que passou, passou para sempre. Portanto, a filosofia prática da humanidade tem consistido em esperar as abundantes recorrências e em aceitar os detalhes como emanação do âmago inescrutável das coisas além do campo visual da racionalidade. O ser humano presume que o sol nascerá, mas o vento sopra onde quer.
Com certeza, a partir da civilização grega clássica houve homens, e naturalmente grupos de homens, que se colocaram além da aceitação de uma irracionalidade última. Esses homens esforçaram-se em explicar todos os fenômenos como o resultado de uma ordem das coisas que se estende a cada detalhe. Gênios como Aristóteles, Arquimedes ou Roger Bacon tiveram, com toda a certeza, uma mentalidade científica no mais alto grau; essa mentalidade sustentava instintivamente que todas as coisas, grandes ou pequenas, são concebíveis como exemplificações de princípios gerais que reinam em toda a ordem natural.
Contudo, até o fim da Idade Média o público erudito em geral não percebeu essa convicção profunda e esse interesse particular em tal ideia, de modo a conduzir uma incessante oferta de homens com habilidade e oportunidade adequadas para sustentar uma busca coordenada da descoberta desses princípios hipotéticos. As pessoas ou duvidavam da existência de tais princípios e da possibilidade de serem encontrados — ou então não se preocupavam em refletir sobre eles —, ou estavam desatentas à sua importância prática quando os encontravam. Seja qual for a razão, a busca era lenta, se atentarmos às oportunidades de uma grande civilização e a duração do tempo em questão. Por que as coisas de repente se aceleraram durante os séculos XVI e XVII? No final da Idade Média uma nova mentalidade manifestou-se. A invenção estimulou o pensamento, o pensamento provocou a especulação física; manuscritos gregos revelaram aquilo que os antigos haviam descoberto. Por último, embora no ano de 1500 a Europa não conhecesse nada de Arquimedes, que morrera em 212 a. C., logo em seguida, em 1700, Newton escreveria os Principia, e o mundo começaria a Era moderna.