A maneira pela qual o homem é posto em risco é a objetivação. A objetivação leva o homem ao centro da abertura o expondo. A exposição engaja o homem de tal modo que ele vai com o risco. O risco é então para o homem, ao mesmo tempo, vontade e representação. Representação, à medida que o homem pertence à percepção de tal modo que o ente lhe faz face e o remete à si mesmo. Vontade, à medida que ir com o risco é querer1.
A vontade está já engajada com a percepção. Perceber é querer. A vontade abre o horizonte no qual se realiza a objetivação. O fenômeno da objetivação é a técnica. A objetivação enquanto desdobrar da vontade constitui a essência da técnica. Ou ainda, o risco, enquanto se determina como objetivação constitui a essência da técnica. “Pela representação humana, a natureza é conduzida a comparecer diante do homem. O homem põe diante de si o mundo como objetivo por inteiro, e se põe diante do mundo. O homem dispõe o mundo sobre ele, e ele se produz para si mesmo a natureza”2.
A com-posição não põe, contudo, em perigo apenas o homem em sua relação consigo mesmo e com tudo que é e está sendo. Como destino, a com-posição remete ao desencobrimento do tipo da dis-posição. Onde esta domina, afasta-se qualquer outra possibilidade de desencobrimento. A com-posição encobre, sobretudo, o desencobrimento, que, no sentido da poiesis, deixa o real emergir para aparecer em seu ser. Ao invés, o pôr da ex-ploração impele à referência contrária com o que é e está sendo. Onde reina a com-posição, é o direcionamento e asseguramento da dis-ponibilidade que marcam todo o desencobrimento. Já não deixam surgir e aparecer o desencobrimento em si mesmo, traço essencial da dis-ponibilidade.
Assim, pois, a com-posição provocadora da ex-ploração não encobre apenas um modo anterior de desencobrimento, a pro-dução, mas também o próprio desencobrimento, como tal, e, com ele, o espaço, onde acontece, em sua propriedade o desencobrimento, isto é, a verdade.3
“Ora, onde mora o perigo é lá que também cresce o que salva”, conforme a citação de Hölderlin dada por Heidegger. No risco supremo, quando se instala a aparência de que tudo é man made, onde paira a ilusão de “encontrar-se apenas consigo”, o homem errante na zona de perigo extremo pode abrir-se a uma aquiescência tal que permita reconhecer e redimir sua errância.
A tecnologia da informação faz do homem mestre e senhor de uma representação, explorando a razão e a memória humanas, na constituição desta representação, impondo à própria natureza humana a engenhosa pretensão de fornecer a si mesma, para processamento e armazenamento. A mimese de razão e memória neste dis-positivo de representação, está em dis-ponibilidade para exploração, como modo em que vige e vigora tudo o que o desencobrimento explorador atingiu até aqui sobre a natureza humana.
Hoje em dia, a escrita, a pesquisa, o diálogo, o estudo, entre outras atividades do homem, podem ser sustentadas pela tecnologia da informação, à vontade. Ou seja, em qualquer canto que haja um dis-positivo informacional-comunicacional, a vontade está assegurada de si mesma, tornou-se seu próprio objeto.
O fundamento e o âmbito essencial da técnica moderna é essa vontade, que em toda intenção e apreensão, em tudo o que se quer e alcança, sempre quer somente a si mesma, e a si mesma armada com a possibilidade sempre crescente de poder-querer-a-si. A técnica é a organização e o órgão da vontade de vontade. Os grupos humanos, os povos e nações, os grupos e indivíduos não passam, em toda parte, de queridos dessa vontade, e não sua origem e seus senhores, mas são quase tão-somente cumpridores de má vontade. (Heidegger, 1994/1998, pág. 205)
Cabe então retomar a reflexão sobre a com-posição enquanto essência da técnica para ir onde cresce a salvação, no próprio perigo que ela ex-põe.
Até agora pensamos a palavra “essência” no sentido comum. Na linguagem da escola, “essência” diz aquilo que alguma coisa é, em latim, quid. A quidditas, a quididade, responde à pergunta pela essência de alguma coisa. O que, por exemplo, convém e pertence a todas as espécies de árvores; carvalho, faia, bétula, pinheiro, é uma mesma arborescência, o mesmo ser-árvore. As árvores reais e possíveis caem todas sob esta arborescência, como seu gênero comum, o “universal”, no sentido de genérico. Será, então, que a com-posição, a essência da técnica, constitui o gênero comum de tudo que é técnico? Se fosse assim, a turbina a vapor, o transmissor de rádio, o ciclotrônio seriam uma com-posição! Ora, o termo, “com-posição”, não diz, aqui, um equipamento ou qualquer tipo de aparelho. Diz, ainda menos, o conceito genérico destas dis-ponibilidades. As máquinas e aparelhos são tampouco casos e espécies de com-posição, como o operador na mesa de controle ou o engenheiro no escritório de planejamento. Tudo isto, sendo peças, dis-ponibilidades e operadores de dispositivos, pertence, cada qual à sua maneira, à com-posição, mas esta, a com-posição, nunca é a essência da técnica, entendida, como um gênero. A com-posição é um modo destinado de desencobrimento, a saber, o desencobrimento da exploração e do desafio. Um e outro modo destinado é o desencobrimento da pro-dução, da poiesis. Esses modos não são, porém, espécies que, justapostas, fossem subsumidas no conceito de desencobrimento. O descobrimento é o destino que, cada vez, de chofre e inexplicável para o pensamento, se parte, ora num des-encobrir-se pro-dutor ora num des-encobrir-se ex-plorador e, assim, se reparte ao homem. O de-sencobrimento ex-plorador tem a proveniência de seu envio no des-cobrimento pro-dutor, ao mesmo tempo em que a com-posição de-põe num envio do destino a poiesis.
Assim, a com-posição se torna a essência da técnica, por ser destino de um desencobrimento, nunca, porém, por ser essência, no sentido de gênero e essentia. Se levarmos em conta essa conjuntura, algo de espantoso nos atinge: a própria técnica exige de nós pensar o que, em geral, se chama de “essência”, num outro sentido. Mas em qual?4
A essência tem que ser pensada como vigência no sentido de duração. E este duradouro, no pensamento originário grego, deve ser entendido como o que perdura, o que permanece em tudo o que ocorre e se dá. Para Heidegger deve-se inserir uma outra conotação, a de “continuar a conceder”, que justamente permite re-encontrar a essência da técnica na com-posição como destino reunindo perigo e salvação, ao mesmo tempo, para o homem.
A ambiguidade de perigo e salvação na essência da técnica requer uma postura justa diante do desencobrimento sob a égide da com-posição, para que não seja a dis-ponibilidade para exploração o único resultado alcançado. O fascínio pelo des-encobrimento promovido pela tecnologia da informação não pode e não deve ofuscar a ação salvadora da com-posição, no exercício de um ver além das dis-posições e dos dis-positivos em direção à verdade que se deixa re-velar. É preciso não se satisfazer apenas com o que se apresenta pelo brilho da tela do computador, mas se empenhar em ver também a verdade desencoberta pela poiesis.
Por esta razão, Heidegger encerra sua “questão da técnica” com um convite. Resgatar um dos sentidos originais do termo techne, arte, Neste sentido, acha-se a possibilidade de um reencontro com a poiesis, o poético. “Outrora, chamava-se também de techne o desencobrimento que levava a verdade a fulgurar em seu próprio brilho”5.
Não sendo nada de técnico a essência da técnica, a consideração essencial do sentido da técnica e a discussão decisiva com ela têm de dar-se num espaço que, de um lado, seja consanguíneo da essência da técnica e, de outro, lhe seja fundamentalmente estranho.
A arte nos proporciona um espaço assim. Mas somente se a consideração do sentido da arte não se fechar à constelação da verdade, que nós estamos a questionar.6
Neste sentido as novas tecnologias da informação e da comunicação devem ser repensadas como objetos de arte. Sua natureza de engenho de representação deve ser reavaliada segundo princípios de uma arte há muito tempo denegrida, a retórica. Um engenho de representação informacional-comunicacional, desenhado segundo esta arte da expressão efetiva de teses, não deveria se preocupar tanto com a produção de efeitos, ou com a simples reprodução de verossimilhanças imaginárias. Sua possibilidade de re-velar a verdade, reconhecida sua identidade enquanto plena expressão da essência da técnica moderna, a com-posição, vai depender de que modo esta arte do passado, a retórica, será apropriada no dar-se e propor-se da informática.
Mas esta é uma outra história… O fundamental, o urgente, diante da iminente expressão informacional-comunicacional, da essência da técnica moderna, é de se enfrentar a questão da informática, indo além de sua funcionalidade, estrutura tecnológica, e aplicação, e de desvendar mistério da informatização além das transformações políticas, econômicas, sociais e culturais, que fomentam tanta fascinação e polêmica.
É preciso reconhecer que a questão da informática abre o homem à revelação contundente da essência da técnica, da Ge-stell. A questão da informática propicia, de modo até então velado pela técnica industrial, ver o perigo do domínio da técnica, em toda sua plenitude, e desta aquiescência, perceber o crescimento do que salva.
MILET, Jean-Philippe. L’Absolu Technique. Heidegger et la question de la technique. Paris: Editions Kimé, 2000, pág. 91 ↩
HEIDEGGER, Martin. Chemins qui ne mènent nulle part. Trad. Wolfgang Brokmeier. Paris: Gallimard, 1962, pág. 345 ↩
HEIDEGGER, Martin. Ensaios e Conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel e Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2002, pág. 30 ↩
HEIDEGGER, Martin. Ensaios e Conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel e Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2002, pág. 32 ↩
ibid, pág. 36 ↩
ibid, pág. 37 ↩