Heidegger (SZ:214-215) – caracterização da verdade como “concordância”

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução revisada de Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 284-286

Aristóteles diz1: as “vivências” da alma, as “noemata” (”representações”) [284] são adequações às coisas. Esses enunciados, que de modo algum se propõem como definição expressa da essência da verdade, desempenharam importante papel ao se elaborar posteriormente a essência da verdade como adaequatio intellectus et rei. Tomás de Aquino2, que remete sua definição a Avicenna, que, por sua vez, remete ao Livro das definições (século X) de Isaak Israelis, também usou para adaequatio (adequação) os termos correspondentia e convenientia.

A epistemologia neokantiana do século XIX caracterizou de muitas maneiras essa definição de verdade como a expressão de um realismo que, do ponto de vista do método, se manteve ingênuo, considerando-a incompatível com um questionamento que tenha passado pela “revolução copernicana” de Kant. O que assim não se percebe, e para o que Brentano chamou a atenção, é que também Kant se ateve de tal modo a esse conceito de verdade que nem chegou a discuti-lo: “A antiga e famosa questão, com a qual se supunha colocar os lógicos em apuros, é a seguinte: O que é verdade? O esclarecimento nominal da verdade como concordância entre o conhecimento e o seu objeto é aqui presenteada e pressuposta…”3

”Se verdade consiste na concordância de um conhecimento com o seu objeto, segue-se que esse objeto deve distinguir-se dos demais; pois um conhecimento é falso quando não concorda com o objeto a que está remetido, mesmo que contenha algo que possa valer para outros objetos”4. E na introdução à dialética transcendental, Kant diz: “Verdade ou aparência não se encontram no objeto na medida em que ele se dá na intuição e sim no juízo a seu respeito, na medida em que é pensado”5.

A caracterização da verdade como “concordância”, adaequatio, homoiosis, é, certamente, por demais vazia e universal. Encontrará, no entanto, algum direito, caso se sustente, a despeito das interpretações mais variadas do conhecimento que traz esse predicado [285] privilegiado. Questionamos agora o fundamento dessa “relação”. O que implicitamente também se põe com o todo da relação – adaequatio intellectus et rei? Que caráter ontológico possui o que se põe conjuntamente?

 


  1. De interpretatione, 1,16 a 6. 

  2. Cf. Quaest. disp. de veritate, qu. I, art. 1. 

  3. Kritik der reinen Vernunft, p. 82. 

  4. Idem,p.83. 

  5. Idem,p.350.